De onde?

arte: René Nijman
arte: René Nijman

– Bom dia. Posso falar com o Fernando?

– Quem gostaria?

– Silmara.

– De onde?

– Bom. De São Paulo. Da Mooca, para ser mais exata. Da barriga da Angelina, casada com o Tonico, meu pai. Da Beneficência Portuguesa, ali no Paraíso. Para minha mãe não foi nenhum paraíso, não. Foi um Deus-nos-acuda naquele hospital, eu não queria saber de nascer, dá-lhe fórceps, vim toda roxinha, não chorava, minha mãe achou que eu tinha morrido e quem chorou foi ela. Mas não morri, e outro dia mesmo estava pensando: sou muito durável. Veja só, tenho quarenta e sete anos. São quarenta e sete anos respirando, sem parar. Inspiro, expiro, inspiro, expiro. Ando pra lá e pra cá, faço isso, faço aquilo, subo, desço, durmo, acordo. Já me machuquei muito quando era criança, rasguei tornozelo andando de skate, cortei dedo na máquina de frios da venda dos meus pais, tenho cicatriz até hoje. Bati feio o carro uma vez, engavetei no Minhocão, tive de fazer B.O. de pijama, quem mandou dirigir de pijama? Tive sarampo, um febrão que me dava alucinações, via gente pelo quarto, números gigantes flutuando. E tive catapora, estomatite, dez injeções de Benzetacil na bunda, tem noção?, cólica renal em pleno shopping, nem consegui comprar o jeans da promoção. Pneumonia, gastrite, insolação, devo ter cruzado com muito bandido por aí e nem fiquei sabendo, graças a Deus, quer dizer, fiquei sabendo em duas vezes. E continuo aqui, não é uma coisa incrível? Nunca que um raio caiu na minha cabeça, nunca fui atropelada, nunca quebrei nada. Acredita que meu sonho, quando pequena, era quebrar o braço? Achava lindo quem ficava de gesso, os colegas da escola assinando naquele troço encardido. Uma vez, fui sozinha na casa de material de construção, comprei gesso e engessei meu braço, improvisei tipoia, fingi sofrimento. Quando minha mãe chegou em casa levou aquele susto, mas logo sacou, eu fingia mal. Quarenta e sete anos e nenhuma fratura, nenhum osso trincado, nem luxação. Devo ser inquebrável. A inquebrável de São Paulo, da Beneficência Portuguesa. Eu não sou portuguesa, nem descendente. Quarta geração de italianos, precisava tanto ir atrás da cidadania. Sou, de certa forma, da Itália. E da Mooca, da Angelina e do Tonico. Isso para ficar só nesta vida; se você me perguntar de onde, mas de onde mesmo eu sou, espiritualmente falando, só fazendo regressão. Será que sempre estive flanando neste planeta, ou será que já passei por outro? Silmara, de Júpiter. Silmara, de Saturno. Sabia que não é só Saturno que tem anéis? Aprendi com meu filho, ele foi ao planetário. Estou brincando, não sou de Júpiter, nem Saturno. Sou da Terra, mesmo, e de São Paulo, estou em Campinas há uma década, praticamente campineira. Morei em outro país, também. Um frio do cão. Aliás, por que se diz “frio do cão”? Ficaria melhor “frio do urso polar”. Então, na verdade, sou de um monte de lugares, dependendo da época, de qual época você quer saber? Sem contar, como falei, dos outros planetas por onde posso ter passado. Está certo, ‘posso ter passado’? Três verbos na mesma oração fica bem esquisito. Pois bem, sou meio que da Itália, de São Paulo, da Mooca, da Beneficência Portuguesa, da Angelina e do Tonico, de Campinas também, esquece isso de Júpiter, senão o Fernando não me atende. Aliás, ele está?

– Um instantinho. Vou transferir.

– Obrigada, bom dia. (…) – Fernando?

7 comentários em “De onde?

  1. Muito obrigada por ligar…aliás,ligue sempre!!foi muito bom saber de você…quer falar com quem mesmo?Fernando? não tem ninguém aqui com este nome…bj

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  2. Minha amiga é “quase” o ar que respiro: está em todos os lugares. É, também, melhor que gato: tem 57 vidas. É feita de titânio: difícil de quebrar. É, também, uma grande cronista: como os bons, tem pencas de livros engavetados.
    Como pode?

    Amei cada parágrafo, Silmara dos Planetas Todos.
    Bjs,
    Huck

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