A verdade sobre comer, rezar e amar

arte: Paul Downey
arte: Paul Downey

Há no mundo um exército dedicado a nos convencer de que cozinhar é uma experiência próxima ao nirvana, o maior ato de amor, a epifania máxima.

Cozinhar pode ser literalmente delicioso, quando rotina, obrigação e horário não estão na parada.

No combate ao mimimi culinário, minha colher de pau e eu estamos aqui para lhes dizer, ó chefs afetivos, que o negócio não é bem assim.

A magia de poder preparar no fogão o alimento da ou das pessoas amadas, embora real, não se aplica a quem precisa fazê-lo todo santo dia, sob a vigilância implacável do relógio e da agenda.

Fora isso, é, de fato, estimulante preparar aquele peixe com molho de não-sei-o-quê guarnecido com lascas de não-sei-que-lá junto com os amigos. Fora isso, faz sentido sovar longamente a massa do pão integral e esperar, como numa gestação, que ela cresça, forte e bela. Fora isso, dá vontade de fotografar o cuscuz lindão e postar no Instagram. Fora isso, pinta alegria ao ver como o bolo de cenoura ficou fofinho e as crianças vibram ao saber que vai ter cobertura de chocolate também.

Há dias – não  poucos – em que cozinhar resume-se a um ato mecânico, necessário para cumprir o protocolo diário (em especial de quem tem filhos pequenos) e atender a uma necessidade fisiológica, sua ou de outrem. Uma pitada de carinho, às vezes nem isso, porque a cabeça está em outras paragens, e pronto. Todos alimentados? É o que importa. Vamos, estamos atrasados.

Há dias – muitos – em que não há poesia alguma no ato de cozinhar. Como naqueles onde eu preciso correr para preparar e servir o almoço a tempo de as crianças não se atrasarem para a aula. Não há ternura possível na produção da torta de legumes quando o relógio, cinicamente, parece andar no fast-forward. Não posso impregnar o suflê, o arroz, o feijão e a salada com boas energias se não avisto mais o fundo da pia, a ajudante ligou dizendo que não vem e a reunião é às duas.

E mais: haja amor e criatividade para compor cardápios diários balanceados com proteínas, leguminosas, carboidratos, hortaliças e tudo que a pirâmide alimentar exige. Quisera ser faraó e viver embalsamada para não ter mais que decidir o que vamos comer. Peço perdão pelas fadas que sepultei, recorrendo ao velho Miojo. Não resta dúvida de que serei exemplarmente condenada pelo fadicídio, quando estiver diante de Deus prestando contas.

Nessas horas, penso que sou uma espécie de alien que pariu. Passo a me autoclassificar como mãe desnaturada, relapsa, sem coração. Mas há algo bastante errado quando o significado de férias é não precisar fazer varejão. Se minha relação com os brócoles, as cenouras e os tomates anda desgatada, lanço mão do self-service. Nem toda cozinha industrial será castigada.

O lirismo permanente do ato de cozinhar, tão declamado pelos soldados da comida afetiva, fica bonito no cinema, na fotografia com frase de efeito que circula no Facebook, na prosa do Mia Couto. Mas quase não combina com o meu dia-a-dia de gente normal. Só de vez em quando.

10 comentários em “A verdade sobre comer, rezar e amar

  1. O-resumo-do-resumo-de-tudo-aquilo-que-já-sabemos: obrigação não combina com amor, nem com reza e muito menos com comida.

    (gosto bem das suas crônicas. vou até preparar alguma coisa pra comer na cozinha…rs).

    Curtir

  2. Sil, acredita que só consegui ler agora????
    Mas valeu taaaaaanto a pena ter parado para ler, que eu até me perdoei pelo meu atraso.

    Arrasou, mais uma vez!

    Beijos … e boa terça (ops, já foi né?)
    Rose

    Curtir

  3. Concordo demais! Para mim, o pior de tudo é realmente planejar o menu. Depois que desenrola, sai macio…rs Também não vejo beleza nenhuma em ir para a cozinha todos os dias, lutando contra o tempo, o forno, o fogo. Mas reconheço que quando a gente faz sem pressão, é bem gostoso. Ouvir um “hummmm”, à primeira garfada, não tem preço!
    Beijo, Silmara.

    Curtir

  4. perfeito, Sil! Quem tem que cozinhar todo dia sabe que é exatamente assim. Gostamos da arte, do capricho, mas nem sempre podemos nos dar ao luxo do tempo necessário para tal. Quem quiser criticar, que encare uma geladeira com poucos recursos, família com fome e o relógio tiquetaqueando que o almoço já está atrasado. Quero ver fazer brotar um almocinho honesto em meia hora! 🙂

    Curtir

  5. Rá! disse tudo vizinha mais querida!! isso já descobri faz tempo….cozinhar sem ter pressa, planejar o que vai fazer, ir atrás dos ingredientes com todo carinho…..isso só em alguns dias por ano! rsrsrs o resto, é batalha! (não batata)….:D

    Curtir

Quer comentar?