O dia em que não jantei com Carpinejar

arte: Robin Ator
arte: Robin Ator

Quatro anos atrás, estive no Festival Internacional da Leitura, aqui na cidade. Por causa dele: Fabrício Carpinejar. Ninguém em casa quis ir, fui só. Prometi voltar logo, só queria vê-lo. Jantaríamos todos juntos depois, marido, cria e eu. Era dia de pastel. Praticamente dia santo.

Depois de ouvir por quarenta e cinco minutos o poeta tuitar seus pensamentos, apresentei-me, pedi autógrafo. Ele assinou a primeira página de “Mulher perdigueira”, trocamos dois dedos de prosa. Contei que minha amiga era a organizadora do evento e coisa e tal. Foi quando ele falou. Dali sairiam, ele mais não-sei-quem, talvez a amiga incluída, para jantar. Pizza.

– Vem com a gente?

Tinha o pastel. Como ligar em casa e dizer, “Ó, vão jantando. Vou dar uma saída.”?

Como explicar aos pequenos, então com três e seis anos, quem era aquele homem de sapatos vermelhos que subtraíra a mamãe do pastelaço em família?

E como declinar o convite para um petit comité com o vencedor do Jabuti? Uma desfeita literária imperdoável, passível de castigo dos fantasmas da academia.

Fiz o que não o coração, mas talvez o fígado, o rim ou o pâncreas mandou. “Não dá, Carpinejar”. Contei-lhe. O poeta compreendeu. Ou fingiu que compreendeu. Os poetas ainda são fingidores?

A caminho do estacionamento, eu não estava só. Juntaram-se a mim o anjinho e o diabinho, aqueles minisseres que vivem de aconselhar. Empoleirados em meus ombros, seguiram dando pitacos. Assim que dobrei a esquina, a eles juntaram-se outros, e mais outros, formando em meus ombros uma comitiva, quase uma convenção de porta-vozes do certo, do errado, das possibilidades e tentações em geral. Eu mal caminhava, tanto peso. A ordem inteira dos querubins versus a trupe do tinhoso. Quando contei, já eram uns vinte de cada partido. Todos arrulhando ao mesmo tempo ao pé do meu ouvido. E eu só queria achar o canhoto do estacionamento, perdido na bolsa.

– Vai, boba! – dizia um.

– Mas tem as crianças… – outro ponderava.

– Quem é esse Carpinejar? – o lá de trás queria saber.

– Aquele que pinta as unhas. – algum respondeu.

– “Mulher perdigueira” nem é tão bom assim.

– Gostei mais de “Canalha”.

– É, “Canalha” é genial.

– Vai ter pastel de quê?

– Chiu! – ordenei. – Vocês não sabem de nada. Combinei de jantar com a minha família e é o que vou fazer. Eles estão me esperando.

Um a um, foram todos desaparecendo. (No fim das contas, todos tinham razão. Não havia certo ou errado.) Pude ouvir, ao longe, um deles em provocativa cantarolação, “Tá com vergonha, tá com vergonha”.

Pode ser. Pode ser que eu tenha ficado com vergonha de ir comer pizza com o Carpinejar. E o medo de sorrir com manjericão nos dentes?

Cheguei em casa e contei ao marido, que estranhou: “Devia ter ido.”

Quatro anos depois da não-pizza, metade arrependida, metade conformada, ainda penso. Paciência. Bobagem fritar os miolos por causa do convite derramado.

9 comentários em “O dia em que não jantei com Carpinejar

  1. Silmara, maldade assumida a minha botar lenha nesse forno de pizza derramada, mas não resisto: fui colega do Carpinejar no jornal da minha cidade, ele ainda jornalista decolando voo como águia maior das escritas outras. Ainda não pintava as unhas, bem pelo contrário, usava calça de terno e camisa risca-de-giz, e nesses bastidores, mandava bem nos lanches da tarde. Creio que a metamorfose pelo qual passou não deva ter alterado essa sua característica, então, além da companhia afiada nas palavras, perdeste uma rodada voraz de pizza.É, porque nossos heróis também se lambuzam e se “embananam” nesses mesmos conflitos, conhecem tão bem nossa alma a ponto de se fazerem inesquecíveis até quando não jantamos com eles, não é mesmo? Uma lindeza teu relato. Beijo!

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  2. Já assisti várias entrevistas do Carpinejar, e sinceramente… amo as “escritas” dele bem mais que a sua pessoa. Me decepciono quando o assisto, gosto das escritas que me levam a imaginar outro homem que não seja ele.

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  3. Eu me divirto com suas crônicas… ao mesmo tempo, tenho a impressão de que o pastel fora infinitamente melhor. Afinal, Carpinejar está beeemmm longe de ser Carlos Nejar, né? rs. Esse sim, aos meus míopes olhos, valeria brigar com todos os devils. Boa, Franco. Boa.

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  4. Como sempre, Sil, delícia de crônica, seja pelo pastel, pela pizza ou a possibilidade do manjericão nos dentes… rsrsrs Entre o cardápio afetivo e o gastronômico, ganhou o primeiro. Melhor assim. Beijão!

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  5. Encanta-me o jogo que você faz com as palavras. Não sei se eu iria…Será? E se lá, ele nem olhasse para mim? Se esquecesse, simplesmente, d me ter convidado? E se foi apenas um convite “da boca pra fora”? Sei não…Tô do lado dos anjinhos.
    Beijo, Silmara.

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