Com açúcar, com afeto, sem chantilly

Arte: Dabs
Arte: Dabs

O doce mais doce que o doce de batata-doce é o doce do doce de batata-doce. Certo? Errado. É o pêssego em calda. Ao menos, no quesito doçura-afetiva particular, é. Seu quase formato de coração há de justificar.

Só tinha pêssego em calda muito de vez em quando. Aniversário, data especial, comemoração, dia de pagamento. Era coisa de rico. Se acontecia de ter chantilly para acompanhar, virava banquete. Aliás, chantilly também era uma extravagância. Reis e rainhas, eu tinha certeza, comiam as duas coisas todos os dias, no almoço, no jantar e no lanche da tarde.

Primeiro, o furo inaugural. Em seguida, o roque-roque do abridor ao redor da lata mágica, revelando que a alegria vem do açúcar – ou vice-versa. A lata, só uma por ocasião, tinha que dar para todos. As metades eram minuciosamente aferidas e divididas. Não me lembro se tinha briga quando a partilha era inexata. De exata, apenas minha felicidade. A gente alça uma coisa à qualidade de transcendental quase que por nada. Um pêssego em calda é um pêssego comum, só que com roupa de festa.

Não sabia como o deixavam daquele jeito, tão amarelo, nem por que tinham que ficar partidos ao meio. Até hoje não sei, não quero saber e, admito, tenho raiva de quem sabe. Um pouco de ignorância dá o tom à fantasia. (Quando descobri que os maravilhosos pontos de luz cor de âmbar que sinalizavam as estradas em obras, à noite, não passavam de baldes de plástico cor de laranja com uma lâmpada dentro, foi uma decepção. Nem todo mistério precisa ser desvendado.) Eu nunca vou ler uma receita de pêssego em calda. Não me conte – tapo os ouvidos, lalalalá – , porque não pretendo reproduzi-los. Não se faz remake de um clássico.

Ontem fui ao supermercado. Passei reto pelo corredor dos doces. Já ia dobrando a esquina quando parei. Voltei, alcancei uma, não mais que uma lata. Não comprei chantilly, que nem precisa. A felicidade, que já custou mais, hoje sai por cinco reais e oitenta e nove centavos.

E, curiosamente, ainda me é tão cara.

7 comentários em “Com açúcar, com afeto, sem chantilly

  1. Silmara, uma lindeza dessas custou a sair, mas valeu a transpiração!
    Linda, dá vontade de chorar, imaginando os dias de pêssego em calda na sua casa, com D. Angelina distribuindo as metades irmãmente.
    Boas e eternas lembranças.
    Suas crônicas sempre me emocionam, antes de tudo.
    Beijo!

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  2. Nossa, que delícia de memória. As latas de pêesego em calda agora já não serão mais as mesmas, terão um toque literato, saudoso e de profundo amor em forma de lembranças. Obrigada por compartilhar seu talento com a gente.
    Cristina Mazzanti.

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  3. oraaa cale-se! cale-se! cale-se! você me deixa loucaaaaaaaaaaa! perfeita! que lindeza! levou-me para a cidade “Tão Tão Distante” em que estas latas também eram raridades. Causavam tanta estranheza quando víamos uma que logo, em coro, perguntávamos: mãeeeeeeeeee hoje tem visita? Ela enlouquecia com esta pergunta! Uma noite resolveu fazer uma surpresa e comprou uma lata de salada de frutas. Na fotografia, em meio às frutas, haviam cerejas… muitas cerejas! E na lata? Talvez duas. Abriu a lata e guardou no armário que ficava na parede. Em baixo uma pequena mesa onde algumas vezes fazíamos as refeições e nesta mesa uma travessa de salada de alface e tomates. Enquanto todos se distraiam com a novela que fazia grande sucesso em horário nobre, caminhei em passos de nuvens até a cozinha, subi na cadeira (a única!), abri muito devagar a porta do pequeno armário e pimbaaaaaaaaaaa! agarrei aquela lata preciosa enfiando os dedinhos na tentativa de encontrar, mesmo no escuro, aquelas bolinhas de sabor delicioso e de cor indescritível. Mas a crueldade do destino acabou com meus planos! Um deslize em pronto! Lá estava a lata de salada de frutas embocada na travessa de salada de alface com tomates! Contar o que aconteceu depois faz-se desnecessário já que a lembrança é maravilhosa! Poxa Silmara, obrigada por trazer esta noite adormecida no tempo para esta minha manhã de hoje. Beijo

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  4. Sil que delícia em dose dupla ler seu texto! Delícia em ver como desenvolve com delicadeza suas memórias e delícia em resgatar esse momento que para mim também era raro e fazer a gente reviver esse prazer infantil. Obrigada! Bjs

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