Ser mãe é padecer na praça de alimentação

Foto: R. Maruo
Foto: R. Maruo

Em praça de alimentação pai, mãe, filhos e espírito santo não comungam da mesma hóstia. Um quer isto, o outro, aquilo. Senta para esperar, levanta para buscar o pedido, ao toque de mil buzinas descompassadas. Trezentos e sete. Oitenta e um. Cento e quinze. É a democracia gastronômica na base da senha.

Não raro, o lugar vira praça da alimentação interrompida. Geralmente, por causa de outro tipo de senha: a necessidade urgente das crianças em fazer número um ou número dois, bem no meio da refeição. Semana passada, inaugurei mais um jeito de ficar com fome.

Era sábado e eu estava só com as crianças. Fomos almoçar no shopping, templo das conveniências gerais. Eles escolheram o self-service. Eu fui de risoto. Apaixonei-me pelo do cartaz e quis um igualzinho: arroz arbóreo, suculentos camarões e tenros anéis de lula, tudo puxado no vinho branco. Meu apetite não era meramente ilustrativo.

Os pratos deles ficaram prontos em segundos. O meu demorou mais. Enquanto eu continuava famélica, eles se viram saciados. Natural que quisessem partir para a sobremesa. Como sou mãe de dois, razoavelmente crescidos e iniciados no mundo das finanças, nomeei Luca, o mais velho, fiel depositário de vinte contos a fim de bancar sorvete para ambos. Um pilar e dez metros, não mais, separavam nossa mesa do balcão, atrás de mim. Lá foram. Eu dava uma olhadela, de vez em quando.

Dei a primeira garfada no meu, só meu, risoto de arroz arbóreo, suculentos camarões e tenros anéis de lula, tudo puxado no vinho branco. A felicidade vem do mar, meu bem.

Segunda e terceira garfadas. Nina, a caçula, veio chorando. Contou, aos prantos e em prejudicada narrativa, que o Luca, dotado do espírito sacana comum aos primogênitos, havia feito não-sei-o-quê, que a fizera cair ao chão e todos à volta haviam visto sua calcinha.

Pousei o garfo. “Querida, acontece. Fica assim, não”. Fiz-lhe um carinho nos longos cabelos castanhos, dei beijinho para sarar (ainda que nada houvesse a ser curado, exceto seu orgulho). “Agora volte lá e compre o sorvete com seu irmão”. Ela foi.

Quarta e quinta garfadas no meu risoto de arroz arbóreo, suculentos camarões e tenros anéis de lula, tudo puxado no vinho branco. Segui apreciando cada fruto daquele mar que me concedera tal prazer. Quase pude sentir o aroma da uva que deu origem ao vinho que tudo aquilo envolveu. Minhas narinas – e meu estômago – faziam festa em alto-mar, em plena terra firme.

Ensaiei a sexta garfada. Problema à vista, Capitã. A caçula voltou. Contou, no mesmo padrão choroso-narrativo, que enquanto ela se queixava comigo da primeira vez, o irmão concluíra que ela não voltaria e resolvera comprar sorvete só para ele.

Mais fácil cuidar de um polvo que de dois bípedes. Ser mãe é padecer praticamente em qualquer lugar.

Recorri à paciência tatuada em meu braço esquerdo. Nem ela, nem o pai, nem o espírito santo para me salvar. Quis fazer como Cronos, que tinha o hábito de engolir seus filhos, assim que nasciam. O deus do tempo fazia isso por medo de que sua cria lhe superasse em poder. Meu motivo seria mais humilde: almoçar em paz.

Pousei o garfo pela segunda vez. “Isso não está certo, meu amor. Eu vou lá com você”. Levantei-me, percorri bufando os dez metros até o balcão, ralhei com o mais velho, certifiquei-me que o sorvete da caçula estava encaminhado e, quarenta segundos depois, eu voltava à mesa.

Tarde demais. A moça da limpeza passou e retirou meu prato, levando dois terços intactos do meu risoto feito com arroz arbóreo, suculentos camarões e tenros anéis de lula, tudo puxado no vinho branco.

Fim.

9 comentários em “Ser mãe é padecer na praça de alimentação

  1. Que dó! Mas, olha, eu não me levantaria da mesa, né? marcou bobeira mesmo! rs Pediria à filha que fosse chamar o irmão, falaria com ele e estaria tudo resolvido. Ou não. Mas pelo menos teria acabado de comer o risoto feito com arroz arbóreo, suculentos camarões e tenros anéis de lula, tudo puxado no vinho branco!
    Crianças. humpt!
    Bj

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  2. Sil, hoje precisei ir ao Shopping comer o risoto feito com arroz arbóreo, suculentos camarões e tenros anéis de lula, tudo puxado no vinho branco, infeliz ideia, feriado, shopping lotado, senha 5052, olhei o prato do vizinho, ralinho….. não era o maravilhoso risoto feito com arroz arbóreo, suculentos camarões e tenros anéis de lula, tudo puxado no vinho branco… Na próxima cronica conta o nome do santo ou melhor do restaurante… bjs…..

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  3. Como sempre seus textos são maravilhosos!
    Compreendo vc perfeitamente, sou mãe de 3 e avó de 2.
    Então passo por isso até hoje.
    beijos

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  4. Texto delicioso feito seu risoto inacabado. Apesar de não ter filhos, compreendi muito bem seu dilema. Vivo em praças de alimentação e sou testemunha das pobres mães que não conseguem se alimentar direito. Me solidarizo com você pois sou apaixonada por risoto e por frutos do mar que é tudo de bom. Só em pensar que foi pro lixo, dá uma dor no coração! Adorei sua escrita e estarei sempre por aqui.

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  5. Lindíssima, pra mim o pior de tudo foi a mulher levar o seu prato!!!! ahahaha
    Por que elas fazem isso com tanta rapidez??
    Quando precisamos de alguém pra limpar a mesa, ninguém aparece, mas…
    Adorei o desabafo!
    bjs

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  6. Impossível não gargalhar aqui olhando para o monitor! A surpresa deve ter sido a mesma que você sentiu, ao ver a mesa vazia… Adeus, risoto feito com arroz arbóreo, suculentos camarões e tenros anéis de lula, tudo puxado no vinho branco. Ainda não tomei meu café da manhã, mas estou com água na boca com vontade de comer um risoto feito com arroz arbóreo, suculentos camarões e tenros anéis de lula, tudo puxado no vinho branco! 😛
    Se ele for tão delicioso quanto a sua crônica, ganhei meu dia!

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