O tempero da minha mãe

Arte: Mariana Leme
Arte: Mariana Leme

Junte cebola, alho, cheiro verde, óleo e sal. Ponha tudo no liquidificador e bata bem. Despeje a mistura em vidros vazios, tampe-os e leve-os à geladeira. Use para refogar qualquer coisa. Em cinco ingredientes, eis a receita das minhas lembranças. Rendimento: uma infância inteira.

Dona Angelina preparava o próprio tempero. Para economizar tempo e dinheiro – talvez mais dinheiro que tempo. Lembro do óleo aquecendo na panela, afoito, esperando pelo tempero, que vinha em generosa colherada. Quando eles se encontravam, era uma farra, chiiiiiii. A casa inteira ficava sabendo do abraço dos dois. Logo em seguida, chegavam os grãos de arroz, lavados e escorridos. Noutra panela, outra farra, agora com centenas de feijões recém-cozidos na pressão. Era sempre festa no fogão da minha mãe. Na cozinha, sua oração. E o tempero, artesanal, era sua pegada. O rastro saboroso pontuando o alimento que nos fez crescer, feito planta.

Bem que tento. Mas é impossível reproduzir o tempero dela. Por mais que eu siga o modo de fazer (afinal, cebola é cebola, alho é alho), falta um ingrediente etéreo, invisível, secreto. Falta ela.

Liquidifiquei minhas recordações no turbilhão impiedoso do tempo. Misturei tudo, Natal com Páscoa, aniversário com Dia das Crianças. Mas o aroma do tempero dela está bem guardado no nariz da minha memória. De vez em quando, ele surge d’algum vento brincalhão. Inspiro o quanto posso, para tentar retê-lo e guardá-lo num vidro bem tampado, à prova de despedidas. Se eu fosse descrever a cor desse cheiro, seria verde.

Será que meus filhos terão alguma reminiscência da maneira como tempero nossa comida? A gente nunca sabe o momento, exato ou inexato, em que vai entrar para o rol de lembranças de alguém. Qualquer ação ou atitude podem virar protagonistas; preciso me lembrar disso, para caprichar mais nas coisas.

Será que, n’algum momento da vida, eles tentarão recuperar algum sabor de suas infâncias? Experimentarão, quando grandes, algo que não tenha sido feito por mim, fecharão os olhos por alguns segundos e se pegarão dizendo “Parece a torta de legumes da mamãe” ou “É igual ao creme de abóbora que ela fazia”?

No fundo, a gente quer é ser lembrada. E o alimento é a memória afetiva mais forte que existe. É o primeiro presente que ganhamos, ao nascer. Onde fica a boca do mundo?

Tantas coisas faço igual à minha mãe, e nem sei que faço. É a herança genética e silenciosa, a perpetuar a nossa espécie e algum tipo de amor. Talvez eu dobre roupas como ela, talvez eu lave pratos como ela, talvez eu abotoe um vestido como ela, talvez eu tenha um jeito de mexer nos cabelos como ela. Talvez até meu tempero guarde em seu DNA a centelha materna. Não podemos mais medir nossas semelhanças em tempo real. É uma constatação, não um lamento.

Há quatro vidros repletos de tempero na geladeira, fiz no comecinho do mês. Ficou bom. Mas não é igual ao dela. É idêntico a mim. Sou eu, deixando a minha pegada no caminho da minha gente.

11 comentários em “O tempero da minha mãe

  1. Que lindo!!! Minha mãe fazia a mesma coisa… Como não herdei a habilidade dela na cozinha, acho que meu filho sentirá cheiro de cozinha e não lembrará de mim, mas da Cidinha, que está na família há muito tempo…. Mas sei que ele lembrará de cheiro de brincadeiras, de cavaleiros do zodíacos que assistíamos juntos e cantávamos a música inicial, do cheiro do Wishbone que assistíamos todo dia, e das canções que cantava para ele…. Realmente lembrança tem cheiro e cheiro tem lembranças… E que continue sempre assim!!!!

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  2. Afff!!!! Tenho a minha mãe comigo, 88 anos. Uma torta de galinha que nenhuma filha consegue fazer, mesmo ela estando junta, dando as medidas…Mesmo assim, chorei ao ler você. Sinto saudades da D. Angelina, minha sogra, que também fazia uma comidinha das boas. Que bom a gente poder deixar alguma memória boa para os filhos, Silmara. Beijo!

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  3. Sil….minha memória palativa é repleta de lembranças e já sei as quais meus filhos guardam. Contudo, meu terapeuta me disse nesta semana: “você não é mais criança, pare de associar comida com a felicidade!”. Achei cruel. Memórias não se apagam….

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  4. A minha mãe tem 82 anos, foi bailarina, atualmente canta em um coral que faz apresentações em asilos, creches, hospitais; pinta lindas cerâmicas e nos 2 últimos anos resolveu conhecer o mundo. Ela também faz o mesmo tempero porque não gosta muito de cozinhar e acha prático, eu faço porque odeio ver pedaços de cebola ou alho na comida e nunca entendi porque o meu fica diferente do dela!!! Espero que esteja no meu DNA essa vontade de viver e levar alegria ao mundo!
    Beijos

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  5. Lindo!
    Quando penso em minha avó paterna,lembro sempre de sua cozinha,onde ela fazia a comida mais simples e saborosa do mundo,temperada com músicas de Dalva de Oliveira e Lupicínio Rodrigues e histórias de sua vida.
    Saudades!

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  6. Não dava pra esperar o facebook …. lindo, adorei …. e lógico, chorei!
    Quando me vejo repetindo cenas da minha mãe, tenho certeza de que estou também deixando a minha marca …. mas a parte que mais me tocou foi pensar que não dá mais pra fazer comparação em tempo real …. é saudade demais …..

    Beeeeeijo e bom final de semana!

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