Dos medos

“Homem do Saco”, Renata Miyagusku

Que tipo de gente eu seria se os meus mais-velhos não me assombrassem – sem querer, até – com a história do Homem do Saco, aquele que me enfiaria no dito cujo e me levaria embora caso eu não fosse uma boa menina?

Que espécime de mãe eu daria se, assim que comecei a andar, não temesse nunca mais ver o rosto da minha, toda vez que ela se ausentasse por mais de trinta minutos?

Em que modelo de adulto eu me transformaria se não morresse de medo dos seres indescritíveis e impiedosos que moravam não só embaixo da minha cama, mas sob todos os móveis da casa, e que me pegariam, zás!, se eu me levantasse de madrugada para fazer xixi?

Eu seria, hoje, uma pessoa mais autoconfiante, uma mãe menos intolerante, uma adulta mais corajosa e bem resolvida, se ocorresse de ter sido poupada lá atrás?

Certos terrores, pensei anteontem, são absolutamente fundamentais à vida humana. Nos primeiros anos, nos do meio e, por que não?, nos últimos. Um pavorzinho aqui, um fantasminha ali, não fazem tanto mal assim a ninguém. Na dose certa, ajudam a construir seres imaginativos, erguem mentes atentas, desencadeiam sinapses que são uma festa. Seus ‘danos’, aqueles que a terapia insiste em tratar, podem, no fundo, ser inofensivos. Quase producentes.

O que seria do cinema sem o sobressalto, da literatura sem o pavor?

Se eu, quando era deste tamanhico, não soubesse o que o escuro me propiciaria em termos de paúra, como mãos gélidas e ossudas surgindo do nada a tocar meus ombros, talvez eu não houvesse exercitado minha imaginação e hoje, quem sabe, eu seria uma pessoa menos empática com os medos e sofrimentos alheios – de qualquer natureza.

Pensei nisso anteontem quando, na praça, ouvi uma mãe fazendo ao filho uma ameaça qualquer acerca do Homem do Saco. Meu radar pedagogicamente correto a condenou de bate-pronto. Onde já se viu, dizer isso ao menino.

Que nada; a patrulha no folclore-afetivo alheio é que é danosa. Eu tive meu Homem do Saco (que era Homem Chato, em neologismo autorizado de infância, e também possuía um saco). Você teve seu Homem do Saco. Todos nós tivemos nossos Homens do Saco! Por que negar isso aos mais novos? Por que ceifar-lhes o direito inalienável de ter pesadelos? (Se é que o Homem do Saco, vilão-mor do imaginário infantil desde priscas eras, ainda está com essa bola toda.)

Pais, mães e responsáveis: perpetuem em seus pequenos meia-dúzia de medos mitológicos, deem-lhes corda, deixem que acordem assustados à noite. O colo bem dado na hora do pânico é o que verdadeiramente nos salva neste e deste mundo.

Gente feliz não é feita (só) de experiência feliz. Isso é lorota que a publicidade inventou e a psicologia certificou. Coisa que até o Homem do Saco, vejam só, deve achar uma chatice.

9 comentários em “Dos medos

  1. A intenção é boa, mas tá ficando chato essa danura pelo bem-estar sem fim, pelo politicamente correto.
    Fico imaginando uma pessoa sem história triste pra lembrar, sem medo, sem trauma, sem angustia. Fico imaginando e quero essa pessoa chata bem longe de mim.
    Gosto de gente normal: com medo do Homem do Saco, de barulho de inanimados ou qualquer outra coisa…
    Adorei.

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  2. Realmente interessante que certos mecanismos de controle estejam disseminados em várias regiões desse nosso imenso território.Sendo difícil controlar as crianças, tantos estratagemas eram e SÃO usados…Na minha família era o “véio do cacáio” que perambulava pela estrada da fazenda onde passávamos as férias…Tinha ele a esperança de raptar crianças teimosas para vendê-las depois.Creio que isto impediu que aventureiros de carteirinha (no caso EU e meu irmão mais velho!) saíssemos pela “estrada afora”…Coisa que fizemos muito tempo depois, quando já não acreditávamos no “mau velhinho”! Mas isso é outra história!!!

    (Então há outra DINAH???) Um abraço pra vocês!

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  3. Silmara,
    Em Cambuí tinha o verdadeiro ‘Homem do Saco’ e ainda vinha com porrete. As crianças tinham medo, os pais punham lente de aumento na braveza dele, mas, na verdade, a gente podia encarar o medo mais de perto. Os moleques eram mais ousados e provocavam. Ele ameaçava com o porrete. Tinha nome, mas não sabia falar (Zé Albano era mudo). Morreu recentemente e foi devidamente homenageado: enterrado com o famoso saco.

    Mas tinha uma lista grande de outros medos: dos ciganos que levavam a criança embora, do escuro no porão da casa da tia, do louco que dava murro se a gente passasse perto dele, da ‘véia’ fedorenta que falava palavrão…

    Boa crônica! Soprando poeira na história de cada um.
    beijo.

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  4. Minha vilã-mor era a Loira do Banheiro. Eu não ia sozinha no banheiro na época da escola por nada desse mundo. Fazia xixi na carteira se preciso fosse.

    Perfeita crônica e pensamento, Dona Franco.
    Um saco IMENSO esses pais que querem poupar os filhos de tudo.

    Beijos,
    Huck (atual AMISSÍSSIMA da Loira do Banheiro). Hehehe…

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  5. Querida, adorei! Nesse mundo maluco de sequestros em shopping e crianças que desaparecem, qdo penso em como argumentar com Juju que ela não pode sair de perto de mim, sempre me assaltou (!) a dúvida – Será que posso??? Me utilizo desse recurso? Oba! Posso!!! Concordo com vc.
    Obrigada! Bjujus no seu coração.

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  6. Olha só, o Homem do Saco ainda vive. Meus netos o temem. rs Acho que é um bom argumento “amedrontar” as crianças, para nossa segurança e a delas. “Vai, então. Se vc encontrar o homem do saco no caminho…” rs
    Se, de repente, começarem a criticar até ele, aí, sim, nossas crianças estarão perdidas. Medos fazem parte da vida e quando entendemos que o homem do saco é apenas um personagem, estamos prontos para entender nossos medos maiores. (acho eu…)
    Beijo, Silmara.

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  7. Bom dia Silmara!
    Eu também tive medo do Homem do Saco, mas tinha mais medo do “Tonhão do pé sujo” que era personagem verídico na cidadezinha onde eu morava… apesar da alcunha que botava medo, ele tinha nome e um endereço certo, andava aqui e ali, pedindo comida em troca de um serviço de jardinagem “meia boca” e eu morria de medo do coitado… também tinha medo de ciganos e de palhaço de circo,e esse medo eu não sei explicar … mas nem carece explicação, medo é medo, e a tarefa de tentar desvendar, fica por conta dos psicólogos… erá que o maior medo destes é o de não encontrar explicação pros medos dos outros…?
    beijinho e um lino dia pra você!

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