Meramente ilustrativa

Pelo cardápio, escolho o calzone mais bonito do mundo. Como quem, em um catálogo de agência de matrimônio, escolhe um candidato a amor. Apaixono-me pela massa dourada transbordando o queijo derretido à perfeição, com suculentos pedacinhos de tomate sensualmente revelados e salpicado pelo cheiro-verde mais verdejante que há. Não tenho dúvida de que fomos feitos um para o outro. Vamos nos casar, o calzone e eu, dentro de “cinco minutos, no máximo”, garante o garçom.

Quando a iguaria chega ao altar, no caso, meu prato, tenho a leve desconfiança de que trocaram o noivo. É desamor à primeira mordida.

A fim de sanar a dúvida, retomo o cardápio. Comparo, lado a lado, o abstrato e o real. O fake e o verdadeiro. A novela e o reality show. Em nada se parecem, o quitute em minhas mãos e a sedutora imagem impressa em papel couché 250 gramas, quatro cores, laminação brilhante. Um é o mísero exemplar do salgadinho de beira de rodovia secundária com asfalto prejudicado. Mero arremedo culinário, aspirante à cidadania italiana. Outro é o que o alimento em meu prato quer ser quando crescer.

Corra, Silmara, corra.

Vá atrás de uma campanha pelo fim das imagens meramente ilustrativas, pelo amor de Deus. Vá às ruas protestar contra os pastéis estetizados dos banners nas praças de alimentação, as pizzas perfeitas no folheto do delivery, os sanduíches cheese-photoshop nos painéis iluminados. Lute, Silmara, pelo fim do engôdo gastronômico, já que o ato de se alimentar ativa diretamente quatro dos cinco sentidos. Todos, no caso da sopa – embora seja falta de educação fazer ruído para tomá-la.

Em boa hora, a campanha será naturalmente estendida aos folhetos de hotéis e empreendimentos imobiliários, em um enorme movimento em defesa da vida como ela é, sem retoques, filtros ou efeitos especiais. Sem mentiras, sem frustrações.

À mesa, eu e o calzone. E se eu pagar a conta com dinheiro meramente ilustrativo?

Pior: e se o laudo médico informar que as imagens do meu ultrassom são meramente ilustrativas? E se o marido confessar que seu amor por mim é meramente ilustrativo? E se a vida inteira for meramente uma grande, equivocada e triste ilustração?

À mesa, o calzone e eu. Ele pede desculpas por não corresponder à minha expectativa. Eu aceito e digo sim. União selada.

A fome vence.

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