Mais louco é quem me diz

Arte: Gustavo Peres
Arte: Gustavo Peres

Ela toca a campainha do asilo, é dia de visita. Caminha com seu visitado até o jardim, param ao lado do pé de acerola. Um aparelho de som instalado sobre uma cadeira garante a trilha sonora de chiados; a ausência da antena não incomoda ninguém ali, exceto ela. Bancos de cimento carcomidos formam um semicírculo, estabelecendo a geografia do encontro. Eles sentam-se lado a lado. Na pauta, passado e presente. O futuro chegou faz tempo, trazendo seus velhos. É sábado.

Uma senhora que mora ali passa pelos dois, resolve entrar na conversa. É a visita dentro da visita. Escolhe seu lugar na quase roda, se apresenta. Beira os setenta anos, está cheia dos colares, dos anéis. A velha interfere no encontro, como os chiados do rádio interferem na tarde de sábado. Ela modifica a pauta estabelecida, mas não se acanha; segue contando sua fabulosa e não menos carcomida vida. Eles vão lhe dando corda.

Diz que participou da última edição do Big Brother Brasil, mas saiu antes do final. “Muita fofoca”. Pergunta três vezes o que ela é dele. Avisa que precisa descansar, tem gravação logo mais. Gravação? A novela das sete, ela é uma das atrizes. “Não assiste?”. Levanta-se, ajeita um dos colares e se despede dos dois, que permanecem nos bancos de cimento. Antes, ela faz questão de anunciar: está grávida. O bebê nasce por esses dias, é um menino. O pai? Roberto Carlos. É, o rei.

7 comentários em “Mais louco é quem me diz

  1. Silmara, o texto é perfeito, mas me ative nos comentários…
    A vida imita a arte ou a arte imita a vida? (arte=escrita).
    Não deixa de ser triste. Triste realidade.
    Beijo!

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  2. Enquanto muitos riram eu chorei porque fui obrigada por um câncer, deixar minha mãe num asilo, embora como o lindo nome “Bela Vitta” e, ir tratar-me. Como a deixei lá três dias antes de minha internação, visitei-a e vi as caricaturas em que são transformadas a maioria dos internos. Muito triste para quem ainda tem lucidez, conviver assim e a mãe ainda pode pedir para a deixarem no quarto pois não desejava ver aqueles “velhos”, ainda tinha sanidade quase intacta, apenas seu corpo estava “estragado”.
    Linda crônica Silmara querida, mas para quem já ouviu os chiados e viu os colares e os filhos da senilidade, não consegue mais ver sem lágrimas tais situações.
    Sabes muito bem tocar todos os corações, cada um, individualmente.
    Beijinhos,
    Beth

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  3. Que a vida lhe dê sempre “DEZ MINUTINHOS”, Srta. Silmara Franco!!!!
    Que beleza de crônica. Completamente VISUAL! Fui até o asilo, ouvi o chiado, escutei o barulho das árvores agitadas pelo vento e, claro, imaginei a atriz, os cenários dela e o filho. Adoro essas viagens senis. AMO!
    Parabéns, amiga.
    ESPETACULAR!!!!
    Bjs,
    Huck-Jô.

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  4. Ahahah …. adorei!!!!! Vou comentar aqui, porque hj estarei em reunião o dia todo, certamente o facebook vai ficar abandonado ……

    Amei, principalmente porque lembrei de algumas conversas sem “pé nem cabeça” que tive com a minha mãe, já no final da sua vida …. tinha dia que eu realmente me achava mais louca que ela (que não estava louca, obviamente, apenas esquecida …..)

    Mas o que eu nunca esqueço foi o que ela falou no último dia, quando eu peguei a sua mão e perguntei: “Mãe, vc sabe quem eu sou?” …. e ela me respondeu: “Você ficou louca? Você acha que algum dia eu vou esquecer de você?” …. e eu pensei “pior é que vai, mãe”, mas não tive coragem de responder ….. Na noite seguinte ela se foi e ela estava certa …. ela nunca me esqueceu, eu é que estava ficando louca!!!! 😀

    Beijos, Sil!!!!!

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