A enfermeira posiciona as ventosas no peito de meu pai, é hora do eletrocardiograma. Pergunto se posso ficar ao lado, na cadeira. Posso. Estar perto talvez não faça diferença alguma, mas publica o cuidado. Declara o afeto.
Ela ajusta os botões, aperta um deles e o papel zás!, assume seu posto. Torna a checar as ventosas, inspeciona os fios. Tranquiliza meu pai e delicadamente ordena, talvez pela quinquagésima vez no dia (muitos pacientes), “Agora, o senhor não se mexe”. Começa. A caneta do aparelho, em riste, vai escrevendo o que seu corpo manda. Eletrocardiograma é o ditado do coração.
Eu gostava de fazer ditados na escola. Escrevia rápido, terminava e buscava com o olhar a professora, aguardando a próxima palavra-desafio: “Quadrado”. Enquanto ditava para a classe, ela aproveitava para fazer outras coisas. Assim, dava tempo de errar, apagar, escrever de novo. Verificava as unhas, conferia o tempo lá fora. “Azaleia”. (Que, naquela época, ninguém ousava não acentuar). Caminhava até a porta, espiava o corredor e retornava. “Famigerado”. Essa era para ver quem escreveria com gê e quem botaria jota.
Meu pai obedece a enfermeira, está quietinho. Parece dormir. Eu também quero dormir, tão tarde. Acordado, naquele pronto-socorro, só mesmo o eletrocardiógrafo. Que segue ligeiro, traçando com determinação militar suas frases que sobem e descem. Como é que não se perde pelo caminho? Devem ser as tais linhas tortas de Deus.
Da cadeira, ouço o ronco – não do meu pai, do aparelho, que fala enquanto escreve. Como os doidinhos do sanatório, escritores dos livros imaginários da vida real. Ou será o contrário? Só sei que o exame vai ficando bonito na codificada caligrafia cardíaca. Fosse lição, meu pai tiraria nota boa.
Eu usei caderno de caligrafia. Sugerido a quem tinha a letra feiosa, nele as crianças aprendiam, na marra, a fazer letra bonita. Pena que nunca inventaram caderno de treinar, além de forma, conteúdo. Assim, as pessoas aprenderiam a escrever também coisas bonitas. A professora pedia para eu fazer a ‘barriga’ do bê bem redondinha, caprichar nas ‘perninhas’ do ême, não esquecer o ‘chapeuzinho’ nas vogais de som fechado. Letra é uma espécie de gente. Alfabeto, a família.
A enfermeira vem fiscalizar, o ditado está acabando. Vamos ver se meu pai passa de ano.
Que tanto a engenhoca rabisca no papel de pauta esquisita? O que o exame nos dirá? Se meu pai está doente, se vai ter de tomar remédio, se enfartou?
Que nada. Era só seu coração escrevendo uma carta de amor para minha mãe.
Estava aqui meio triste. Li seus textos e não estou mais triste. Vc escreve muito bem!!!
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Eu choro quando vc escreve do amor do seu pai por sua mãe….:)
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Lindo menina.
Tantas vezes acompanhei minha mãe nesses exames e jamais me ocorreu que os risquinhos no papel eram cartas escritas por ela para meu pai…
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Aiai. Bonito isso!!
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Linda crônica! Linda, linda!
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Não preciso dizer que sou seu fã, pq sou mesmo, e você sabe disto… Me espelho muito em seus textos e se deus quiser um dia chego lá… parabéns
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