Tupperwaaare!

Arquivo: National Museum of American History

Nos desenhos antigos o homenzinho investia contra a árvore com seu machado afiado. Na última machadada, gritava “Madeeeiraa!” e ela, rangendo, tombava ao chão.

Em casa não tem machado. Mas basta abrir o armário da cozinha e, em segundos, tal a árvore, todos os potes plásticos vêm abaixo. Nem dá tempo de berrar “Tupperwaaare!” ou coisa parecida. Tento agarrar o azul, o verde despenca, trazendo o vermelho junto. Num efeito avalanche, por pouco não sou soterrada. Eu, que só queria guardar o arroz que sobrou do almoço, à noite tenho pesadelos com ferozes vasilhas voadoras me atacando, numa versão doméstica d’Os pássaros, do Hitchcock.

Já decretei: que todos sejam guardados com as respectivas tampas, ainda que isso tome mais espaço. A revogação é inevitável; a arrumação não dura dois dias. Inútil organizá-los. São objetos dotados de ânima. Na calada da noite, como se tocados por uma varinha (plástica) de condão, criam vida e mudam, eles próprios, de lugar. As tampas vão passear, os quadrados se enfiam nos redondos, os grandes sobem nos pequenos, numa farra colorida de dar inveja. É carnaval no armário.

Como nas campanhas de pessoas desaparecidas, com apelos nas redes sociais, eu estabeleço uma diligência em busca das peças perdidas. Pergunto a todos da casa, até ao gato. É sabido: tupperware viúvo de sua amada tampa não tem serventia.

Na rotina de uma cozinha, os potes plásticos são tão fundamentais quanto odiáveis. Um dia ícones da praticidade e da modernidade, hoje um mal necessário. Ruim com eles, pior sem eles. Não posso ver feirinha deles no mercado: compro. E quanto mais compro, mais eles somem, num incompreensível fenômeno de abdução plástica. Há um universo paralelo aonde todos eles vão parar, meu bem.

Ou nem tão longe: certa vez, reclamei com a empregada que eu não tinha mais tupperware, apesar de me lembrar dos tantos comprados. Dia seguinte, ela vem trabalhar com uma sacola cheia deles. “Fui levando neles as sobras de comida da senhora, esqueci de trazer de volta”.

Tem também a amiga que, em sereno dia de fúria, aguardou a avalanche sossegar, colocou tudo num enorme saco preto e deixou-os para o lixeiro levar. Invejo rompantes de atitude assim. Só podia ser sagitariana.

***

Quero tupperwares novos, é meu desejo-metonímia da vez. Mas não os de armazenar resto de sopa ou lasanha; os de organizar cabeça. Poder guardar cada ideia e cada sentimento no seu lugar. Sentimento misturado é um perigo: medo com vergonha, amor junto da raiva, compaixão ao lado da pena. Tudo ficaria ali, arrumadinho, à mão. E com tampa, que é para conservar as coisas, até a velhice. Só precisariam inventar outro material. Tem coisa que não dura no plástico. Apodrece.

10 comentários em “Tupperwaaare!

  1. Silmara o velho adágio diz que cabeça vazia e a oficina do demônio. Acho que o armario cheio de tupperware que não serve também é. Kkkkk

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  2. Pensou que legal se eu conseguisse um tupperware para guardar meu Ódio e outro para o meu Amor ? Não precisaria de um para guardar minha Agonia…. E de qual matérial seria, hein ?? Pensando aqui…. beijos

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  3. Lindo saber fazer cronica com os nhacas potes abduzíveis.
    Quanto a organizar a cabeça, recomendo não usar os plásticos.
    Usando vidro ou cristais finos, nas prateleiras onde são guardados os sentimentos, cuida-se mais em não misturá-los para evitar trincas e cacos.
    Ler-te é uma benção!
    Beth

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  4. Muito bom Silmara!

    Os potinhos de mamis são bem organizados! Ela utiliza um bem grande para guardar as tampas e os potes todos encaixados, bem certinhos! Mas alerto que nessa organização somente ela encontra!!!!

    Adorei sua crônica!

    Bjos

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  5. “É carnaval no armário”. Fooooda essa frase, Franco!!!

    A amiga sagitariana SOU EU! Hehehehehehe. Feliz pela citação do meu notável ato de pessoa zen… rs.

    De resto, amiga… Eles SEMPRE vencerão, não tenho dúvidas. Menos os nossos sentimentos que, dentro deles, vencem para apodrecer. Melhor fazer a limpa às vezes. E, em alguns casos, se não podemos vencê-los, melhor nos unirmos a eles.

    Bjs de tampa de prástico… rs. (Sem pote… Acho que não há pote pra mim… SNIF).

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  6. Silmara, só você pra transformar a bagunça dos tuperwares numa crônica tão gostosa e terminar incitando na organização da cabeça ….. você é mesmo fantástica!!!!! Vou falar mais uma vez …. sou sua fã! 🙂

    Bjs
    Rose

    PS: Eu odeio meus tupperwares …. tenho vontade de jogar todos fora cada vez que eu não acho uma tampa!!!!!!

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  7. Muito boa! Sensacional! Você traduziu exatamente o que também sinto em relação aos benditos potes, potinhos, potões plásticos. Vai ser impossível abrir o armário agora, sem lembrar da abdução plástica! 🙂
    Beijos

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