Das coisas que não faço

Arte: Leszek Pietrzak

Dentre as coisas que minha mãe fazia para mim, no tempo em que eu era criança pequena e também quando virei criança crescida, há várias que não perpetuo com meus filhos, como seria natural. É como quebrar a corrente, furar o comboio afetivo, interromper a matrioska. Às vezes, me cobro. Outras, nem tanto. É meu jeito de combinar passado e presente.

Não faço bolos para meus filhos. Em casa sempre havia um: nêga-maluca, pão-de-ló, bolo com recheio, bolo sem recheio, bolo para o chá, bolo genérico, bolo de qualquer coisa. Tinha o tal do bolo-coelho, famoso na vizinhança e entre os familiares. Feito sob encomenda, demorava um tempão para ficar pronto. Lembro do seu caderno de receitas com o esquema para confeccioná-lo, passo a passo, e uma ilustração feita à mão do orelhudo. Receitas também são uma espécie de desenho. Hoje, vitimada pelo tempo arisco e seduzida pela conveniência do bolo pronto, recorro à padaria e escolho um, embalado em isopor fácil, sem assadeira para lavar depois. Não me lembro mais do ronco da batedeira. Aliás, não tenho batedeira. Raspar restinho de massa na tigela é apenas uma doce, cristalizada e antiga lembrança. Nem sei mais o ponto da clara em neve. Não fiz nenhum dos bolos de aniversário dos meus filhos. Ao contrário de mamãe, que assinava todas as produções culinárias, festivas e não-festivas. O bolo pronto, vá lá,  é bom. Mas é bolo sem história, sem certidão de nascimento, nem RG. Não tem signo. Dia desses, o mais mais velho comentou, com expressiva animação, o bolo que comera na casa da vizinha. Tinha gosto de mãe.

Não faço roupas para meus filhos. Mamãe costurava, tricotava e crochetava para nós. O guarda-roupa dos meus vem unicamente das lojas. Quando a caçula soube que eu andava tendo aulas de corte e costura, encomendou uma saia igualzinha à que eu acabara de fazer para mim. “Até aqui, mãe”, disse ela, marcando com a mãozinha a altura do joelho. Ainda não fiz. Devo-lhe isso, filha. E sequer elaborei uma boa lenga-lenga para justificar a demora. É porque não tem, mesmo.

Não nado com meus filhos. Não que eu tenha tantas lembranças maternas dessas situações. Nem sei se ela gostava. Mas entra para a lista, também. Sou avessa a experiências líquidas, embora saiba nadar. Minha atitude diante das águas é limitada à contemplação, à reverência. Não careço de maiores interações, enfim. Recuso sistematicamente o convite dos pequenos para o tchibum. Ao lado de deixar crescer meus cabelos, esse é o maior desejo deles. Um dia, quem sabe. O tchibum, claro.

Das coisas que faço para meus filhos, independentes do legado parental – como desenhar com eles, passar longas horas nas livrarias, promover sessões de cócegas, cortar-lhes as unhas enquanto eles assistem TV, preparar-lhes banana amassada em forma de coração – , qual delas eles imortalizarão junto aos meus netos e qual eles quebrarão a corrente?

O futuro do pretérito, no quesito tradição, nunca será perfeito.

PS: passei a fazer bolo para meus filhos. Muitos.

11 comentários em “Das coisas que não faço

  1. Olá Silmara. Deixo hoje o meu comentário porque senti que na verdade seria justo deixar de todas as vezes que leio as suas crónicas e fico emocionada de alguma forma fico feliz com as suas palavras que me vão acompanhando ao longo dos dias. Por falta de tempo, com a correria dos dias, acabo por não deixar as vezes merecidas! Este é para compensar esses dias 🙂 Crónicas lindas demais as suas!!!!

    Beijinhos de Lisboa

    iara

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  2. Que lindo, Sil!!!!!
    Lógico que eu chorei!!!!
    Eu também não faço bolos pros aniversários deles, mas fazer roupas pra Nat tem me trazido tantas lembranças boas da sala de costura da minha mãe …..

    Bjs
    Rose

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  3. Minha mãe também não faz bolos. Mas já falei que vou sentir falta da maionese dela quando ela não puder mais fazer. Provavelmente eu quebre corrente não pegando a receita…
    Mas aprendi muitas coisas pra passar pra frente!

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  4. Minha mãe só teve tempo de amassar o abacate e me dar na boca qdo eu ainda não tinha lembrança para isso. Sei pelas fotos… Saudade de tudo que não tive…
    Corre, amiga. Ainda dá tempo de vc manter e iniciar VÁRIAS correntes. Não confeccione um futuro de arrependimentos!!!
    Bjs de história infantil,
    Huck

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  5. Vim aqui através do blog da Lúcia, minha mãe não era assim tão prendada na cozinha, mas me lembro de tantas coisas boas. Eu detesto cozinha, minhas filhas e neta jamais lembrarão de um bolo feito por mim! Mas lembrarão dos dias de praia, de pular corda e das roupas de boneca que eu fiz, assim como minha mãe fez para mim.
    Boa semana
    abs
    Jussara

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  6. Aqui a tradição culinária foi quebrada por mim, mas refeita pela filha que faz as receitas da avó (minha mãe). Penso que esses elos são rompidos pela geração imediata e retomados pela segunda. Adquiri da avó materna o gosto pelas agulhas, lãs, linhas e tecidos!

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  7. Todos temos recordações de coisas que os pais fizeram por nós e que não repetimos com os filhos. Boas e ruins. rsrs Tenho certeza de que, se as padarias continuassem a vender apenas pães, todas as mães ainda fariam bolos para os filhos, ou pagariam alguém pra fazer. A vida facilitou muita coisa para as mulheres, dificultou outras – em maior número – mas tudo é uma questão de quem somos, não adianta pensar no que não somos. rs Nesse quesito, de prendas de cozinha, pequei feio! Continue fazendo por eles tudo o que faz. Sempre terão lembranças boas e as não tão boas…É a vida! beijo!

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  8. Lindo! Lindo demais isso, Sil!
    Claaaro que seus filhos terão lembranças das coisas que você faz com eles e para eles. Tenho certeza que eles se lembrarão dos desenhos, dos livros – e isso tudo, garanto, associado a cheiros, cheiro de papel, de lápis de cor, de livros, da livraria…
    E os seus netos quando adultos irão lembrar da papinha que seus filhos farão, talvez não mais em formato de coração, mas no formato de muito amor e carinho, porque esses continuarão a formar a corrente. Beijos.

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