O exército de bolinhas de sabão

Arte: Alanna Risse

Dorme o homem no jardim da praça da catedral. Fez ali sua cama, não se sabe a que horas. Já são onze da manhã e ele ainda não se levantou. Ao seu lado, trapos e tralhas não-identificadas a lhe fazer a guarda. O que houve com o homem? E o que ouve o homem, em seu sonho de terra, pedra e flor? O violino de Jean Luc Ponty ou a sanfona do Gonzagão? Os conselhos de seu pai ou os mandamentos de Deus?

É sábado. No dormitório do homem instalou-se, logo cedo, a feirinha de artesanato. Com música, barraca de pastel, anúncio de tudo. Tem criança pedindo coisa à madrinha. Tem velho de vida comprida, sentado no banco assistindo o vento. Tem moça de saia curta namorando em pé. E tem o homem, que ainda dorme e sonha no jardim. Sua madrugada é outra.

O vendedor de balões, para atrair a clientela, lança no ar bolinhas de sabão. Um exército delas, cuja missão – engana-se quem pensa que é proteger a alegria das crianças – é o ataque ao homem que dorme.

As soldadas, feitas de água rara e sabão barato, devem, a qualquer custo, subtrair-lhe o sossego. Fazê-lo ouvir a música, comprar na feirinha, comer o pastel, desejar o tudo que se anuncia. Beijam-lhe os pés pelados e encardidos (adormeceu sem meia, nem sapato), tocam-lhe o cenho intranquilo, quedam sobre seu peito oco e explodem, como serenas kamikazes. Outras erram a mira e acertam as flores do jardim, tal abelhas líquidas. De tão leves e delicadas, nenhuma acorda o Cinderelo bêbado. Trazem em sua fórmula o sopro divino do dono dos balões, criador do teatro mágico da praça da catedral. Mas falham: não servem para despertador.

2 comentários em “O exército de bolinhas de sabão

  1. Que delicadeza… Pura poesia…. E ele nem imagina que virou personagem de crônica… Deve estar dormindo em qualquer outro lugar ou quem sabe na mesma praça. Bjs!

    Curtir

Quer comentar?