A comédia da vida materna, parte II: a missão

E a pediatra das crianças pediu exames de fezes. Daqueles que não se colhe em laboratório, e sim, no recôndito do lar. Todo ano ela faz isso. Deve se divertir um bocado imaginando as pobres mães (pais não dão conta, morrem de nojo) travando uma luta inglória com frascos esterilizados e pazinhas traiçoeiras, à espera de uma boa amostra de cocô.

Não satisfeita com o trivial, e para meu desespero, ela pediu logo três amostras. Vejamos: dois filhos, total de seis porções a serem colhidas (em dias alternados), armazenadas e entregues no laboratório, no máximo em 12 horas. Lá vou eu, inspecionar o relógio de hora em hora, enquanto verifico, não sem demonstrar alguma ansiedade, a predisposição deles em consumar o ato. Rezo para que não seja antes das sete da noite; se for, o prazo vai para as cucuias e a produção, para o esgoto.

Ela também pediu exames de urina. Embora feitos no laboratório, esses representaram igualmente um ato de bravura – crianças raramente alinham necessidade, desejo e horário, gostam de brincar de acender e apagar a luz no banheiro e sempre querem ver como é o sabonete. O que dirá realizar o outro – de altíssima complexidade – em meio à rotina doméstica e sem diploma de enfermagem ou certificado de contorcionismo. Epopeia é o mínimo. Nos faz questionar o porquê de, um dia, termos desejado perpetuar a espécie.

Quem não tem filhos pequenos não faz ideia, mas uma coleta dessas não é simples. Requer prática, habilidade, destreza e, sobretudo, estômago. Adultos se programam, conseguem estabelecer um razoável planejamento refeição/toilette, agem sozinhos. Já com a gurizada, é preciso estar eternamente alerta, apetrechos ao alcance, pois qualquer hora pode ser hora. E se perdermos essa hora, é como diz Adoniran em seu Trem das Onze: “só amanhã de manhã”.

Mãos à obra: eu organizo o movimento, oriento o Carnaval, ponho-me a postos e não perco a cria de vista. Ao ecoar do chamado, empunho frasco e pazinha, saio voando. Muitos serão os alarmes falsos, até que chegue a Hora H. Ela chega e, nesse momento, faz-se mister evocar uma energia superior, rogando ausência momentânea de olfato e frescura. O mais velho se posiciona no vaso sanitário, eu me concentro. “Espera um pouquinho, filho”. “Senta mais para cá”. “Assim está bom?”. “VAI!”. Nesse instante, a caçula, sugestionada, chama do outro banheiro: “Também estou com vontade!”. Não há alternativa: o pai terá que enfrentar seus limites. Pelo menos, até eu estar liberada para acudi-lo.

É assombrosa a possibilidade de avaliar se uma pessoa está saudável ou não através da análise de seus dejetos. As universidades poderiam formar médicos tarólogos, com poder de visualizar a saúde de seus pacientes através dos arcanos, dispensando, assim, as constrangedoras coletas de substâncias orgânicas e mal-cheirosas.

A delicada operação é concluída. Ainda há, porém, a bizarra finalização: manter as amostras na geladeira. No dia seguinte, todos almoçarão fora. Não há paz quando se sabe que elas – ainda que triplamente acondicionadas – estiveram próximas aos tomates.

As cenas se repetem por mais duas vezes nos dias seguintes, com pequenas variações e, eventualmente, alguns acidentes. Ao todo, três idas ao laboratório. A recepcionista já sorri quando me vê.

“Ser mãe é padecer no paraíso”, disseram. Com direito a passeios pelo purgatório, admita-se. Mas missão dada é missão cumprida. Dias depois, a recompensa: resultados negativos.

6 comentários em “A comédia da vida materna, parte II: a missão

  1. risos! Vim caçar esta cronica para reler, pois tive que fazer isso esses dias, da isadora foi fácil, era só colher das fraldas e torcer para que ela não estivesse indisposta, do gustavo, ah…o gustavo… morria de rir e de nojo cada vez que me via de luvas pegando os dejetos e botando no potinho, até brincar comigo brincou “ó mãe, fiz um “mó” grandão, voce vai ter que cortar no meio” …. nooooojo!!!! mas o resultado valeu. Negativo!!!

    ô vida dura que é ser mãe…

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  2. Passei pelo purgatório do exame de fezes recentemente com a minha filha adolescente, que assim que descobriu que tinha que fazer o tal exame, se recusou a ir ao banheiro – e quando foi ( deve ter ido, ne?) escondeu de mim como pode. Fez exames de sangue tres vezes, fez ultrassom e passou pelo CT scan ( que é super dolorido) mas fazer coco no vidrinho nem pensar. Duas semanas e quatro médicos depois, conseguimos convence-la a cooperar – por que se ela insistisse em não ajudar, teriamos que seda-la e coletar “na marra” e na fonte.

    Graças a Deus, uma amiga me ensinou um truque simples: encher o bidê de papel higienico e pedir pra criança “depositar” o material ali. Depois é so pegar um pouquinho e colocar no vidrinho – e pedir pra empregada limpar o bidê…hahaha

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  3. Confesso que bateu um medinho….. o que esperar de um futuro bem próximo. Ai ai ai … Ser mãe, tem muitas alegrias e algumas m… para atrapalhar. Bjs.

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  4. Ai, Silmara……………. Até chorei de rir….!!!! Você é hilária, ainda mais nos detalhes da “coleta”, pois todo mundo conta a parte boa de ser mãe, mas “os passeios pelo purgatório”, quase ninguém relata para as mães de primeira viagem! Obrigada, mais uma vez! Beijos de sua fã

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  5. Silmara, este pediatra é sádico… meu filho de 6 anos nunca fez exame de fezes… mas toma vermífugo de 6 em 6 meses… ri muuuuuito imaginando a “ginástica materna” para fazer o dever e tirar nota dez… rs
    Bjs

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