A vidente

Ilustração: Shelly

Quisera ser etérea, capaz de passear para trás no tempo e observar gênios da humanidade, prêmios Nobel, líderes de nações, inspiradores de gerações inteiras, antes de serem o que foram ou são. Lá, quando brotaram no planeta. Quando usavam fraldas, aprenderam o abecê e nem sonhavam o que viriam a ser. Eu seria uma vidente. Só que especializada em passado.

Poderia, também, não ser etérea coisa nenhuma, e sim, testemunha anônima de carne e osso, vivedora das épocas em questão. Uma cozinheira aflita, uma médica mal-humorada, uma professora gentil – figurantes que permeassem, por acaso e sem intervenção, a vida de tais gentes. Com a qualidade de, vivendo no passado, ser sabedora do futuro. Que, no caso, é hoje.

Só para espreitar, por exemplo, Millôr Fernandes pirralho. Ainda Milton, nos seus dez anos de idade, órfão, morando com o tio e vendo, como o próprio contou, “o bife só no prato dos primos”. E ponderar se a falta do bife o ajudou – ou não – a fazer melhor o que ele trataria de fazer dali uns anos.

Flagrar Madonna tomando banho de chuveirinho, onde o mais longe que seu pensamento alcançava era do quê iria brincar logo em seguida.

Espiar, feito vizinha enxerida qualquer, Caetano Veloso em seus primeiros passos, desengonçado como todo bebê, sob o olhar atento de Dona Canô.

Fazer coro, disfarçada de parente, no “parabéns a você” de Luís Inácio Lula da Silva em seu aniversário de quatro anos. (E ficar com pena; não teve bolo.)

Ver Fernanda Montenegro fazendo lição de casa e penando na matemática. Fernando Pessoa em frente ao espelho e a primeira barba na vida. Martin Luther King brincando com um caminhãozinho de madeira no quintal. Steve Jobs na cantina da escola, contando os cents que faltavam para o cheeseburguer. Da Vinci ardendo em febre, no colo do pai. Sidarta Gautama reclamando das minivestes reais, pinicavam muito. John Lennon banguelo e cheio de vergonha. Pelé balbuciando “bo-la”.

O propósito do desejo é ingênuo: provar que todos nascem iguais. E assim permanecem, até o dia em que seguem pelo caminho que lhes foi soprado e deixam de ser iguais aos outros. Preciso, porém, ser ciente de que, estando no passado, não posso, nem devo, interferir no que quer que veja ou ouça. Nem contar nada a ninguém. Para não atrapalhar o mundo.

É desejo sem serventia, então. Só vaidade. Orgulho de ser detentora de visões privilegiadas e, no entanto, incompartilháveis. Mais proveitoso seria desejar o fim da fome no mundo, a salvação das tartarugas-marinhas, os números sorteados na Mega Sena. Mas não. Invento de querer ser vigilante do que foi. Fotógrafa do anterior. Fiscal de pretérito.

Tolice pura. Videntes, de passado ou futuro, nunca são muito levados a sério.

5 comentários em “A vidente

  1. A Bel me mandou o seu link e eu vim correndo ver o que ela estava me mostrando. Me encantei com o seu blog, a sua escrita fuida, as suas estorias.
    Vim pra ficar.

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  2. Linda crônica. Lindo sonho. Quantas obras eu gostaria de ver serem criadas: Quem posou para a “Mona Lisa” ? Michelangelo: proque Vc deu essa martelada no joelho de Moisés ? Quantos mistérios por desvendar: Porque Da Vinci, pintor de inúmeras cenas do Cristianismo, nunca pintou a cruxificação de Cristo ? Ou indo um pouco mais para trás, indagando de Cristo o que ele quiz dizer com sua frase: “Na casa de meu Pai há muitas moradas” !? Também sonho poder dominar o tempo…

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  3. Todos nascem iguais, Sil, e mais importante: todos morrem iguais….Pena que muitos se esqueçam disso….bj linda! 🙂

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