Only yesterday

Ilustração: Fractal Ken

É que eu queria dar um presente para meus irmãos mais velhos, com meu próprio dinheiro. Crianças gostam dessas coisas. Fomos à loja de discos e escolhi “Horizon”, vinil dos Carpenters lançado em 1975. Eu tinha o que, oito, nove anos? Como disco presenteia mais de um ao mesmo tempo, eu ficava na sala, encarte nas mãos, cantando “Only yesterday” junto com a Karen Carpenter. Decorava a pronúncia das palavras, sem nem sonhar quais eram seus significados. Foi depois que fiquei amiga do dicionário. Ela falava de um certo ontem para um dia que, agora, é meu ontem também.

Spring era o nome da loja. Num tempo onde lojas de discos vendiam, basicamente, discos. LPs, compactos e K7 (quem lembra?) dispostos nas prateleiras, paredes com pôsteres de cantores e bandas, uma vitrola (vi-tro-la!) para quem quisesse ouvir o disco antes de comprar e pronto. Conseguir a letra das músicas em inglês? Só com o encarte ou o professor. VHS, CD, DVD, MP3, Blu-ray… Não havia tantas siglas. Multimídia era palavra ainda não-inventada e a internet não passava de um embrião no secreto útero norte-americano. (Quando conto minhas histórias, às vezes, tenho a sensação de que não estamos falando do mesmo planeta.)

Ficava a uma quadra de casa, na rua da Mooca, zona leste paulistana. Seu dono, batizado Manoel Francisco do Lago Neto, era o Glenn Michael, cantor de relativo sucesso nos anos 70, quando emplacou duas de suas músicas na Rede Globo. Cara meio quietão, cantava em inglês e “Spring” (claro) e “Just imagine” foram temas de abertura do Jornal Hoje (de eterno ontem e sempre) por um bom tempo. Será que, quando pequeno, ele também ficava de encartes nas mãos fazendo coro com seus cantores preferidos? Perdi minha chance no mundo da música.

A canção que abre “Horizon” é “Aurora”, e a que fecha, “Eventide”. As duas são idênticas, exceto pela letra: uma fala de amanhecer; a outra, de entardecer – também numa espécie de ontem e hoje, passado e presente, dia e noite, começo e fim. Achava bonitíssimo uma mesma música ser duas.

A Spring resistiu por várias primaveras e finalmente fechou. Não sei do paradeiro do nosso “Horizon”. Nem do Glenn Michael. Só sei da Karen, que morreu de anorexia em meados dos anos 80. Uma das vozes mais lindas do mundo. Das mais melancólicas, também. Tristeza e beleza, além da rima, parecem gostar uma da outra.

Resta-me reencontrar as canções nas versões modernas da velha loja do Mané, agora tão atemporais e infinitas no ciberespaço. E foi o que fiz ontem. Somente ontem.

8 comentários em “Only yesterday

  1. Oi Silmara, como vai moça…? Olha, faz 160 anos que não comento em blogs…hahahah, mas vamos lá. Sou nascido e criado na mooca. Nasci num cortiço nos idos anos 60 numa travessa da madre de Deus. Conheci o Glenn. Nunca conversei com a fera. Muito introvertido. Não se abria. Cresci, ganhei corpo, vida e segui mundo afora. Por acaso como soi fanático por musica desde a mais tenra idade, estava ouvindo Elvis dos anos 50 e essa musica caiu no colo. O coração bateu forte e a alma saiu do corpo pra dar uma voltinha no meu passado….Até chorei….Soube que o velho Glenn ainda mora por lá. Não tenho certeza. mas enfim, seguiremos juntos revisitando o passado e sonhando como meu primeiro beijo, minhas calças velhas de jeans e meus cabelos cacheados cheios de nós. Bons tempo….

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    1. Oi, Olegario! Adorei seu comentário. Quando escrevi esta crônica, a filha do Manoel (Glenn) me escreveu e fiquei muito feliz. Bons e velhos tempos. Eu sou toda saudade. Abraço!

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  2. Puxa que coincidência! Eu e meu amigo Neuton morávamos tb próximo a loja e o entrevistamos com 13 anos para um trabalho escolar em 1977 e ele ainda tocou Just Imagine ao vivo no violão no final.Sensacional!!

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  3. Que texto lindo! Pôxa, que nostalgia…! Passei por aqui pesquisando essas banalidades que vão nos levando aos subterrâneos da internet e ganhei minha tarde! Não achei o que buscava – o texto à moda de discurso no fim de Spring, canção dessas pelas quais era apaixonado desde sempre, mas que só agora soube que era Made In Brazil! – no entanto, aqueci meu coração com sua história, que é minha também e de… bem, não muitos mais hoje, na verdade…!

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    1. Olá, Socrates! Que alegria ler seu comentário. Fico feliz que tenha gostado. O Manoel ainda mora na Mooca, sua filha me escreveu, mas perdi o email com o contato dele. Ele poderia te ajudar. Se eu descobrir, escrevo para você. Abraço 🙂

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  4. Lindo texto. Eu ainda tenho o vinil que o meu irmão mais velho comprou e que o meu pai tanto amava. Tenho muitas saudades das lojas de discos e do tempo que eu ganhava dentro delas.

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