Ilustração: Backbone-flute/Flickr.com
– Eu não vou comer isso, parece um cérebro.
A mãe colocou as castanhas portuguesas de volta na vasilha, tentou as avelãs.
– Eca!
A única época que o menino via as oleaginosas era no Natal, e sempre na casa da madrinha. Não se pode amar o que pouco se vê.
– Mas você nem experimentou…
O garoto pousou o Buzz Lightyear no prato onde seria servido o jantar. Encarou a fruta e teve uma ideia – imagem é tudo.
– Quero Nescau Cereal.
– Não tem Nescau Cereal na ceia de Natal, Rodrigo.
– Tem, sim. Lá no armário da cozinha.
A mãe baixou os olhos. Suspirou.
– Pode até ter no armário da Dinda, mas você não vai comer e pronto. Viu como a mesa está bonita?
– Por que tanto enfeite?
– Porque é uma noite especial. A gente reúne a família, tem coisas gostosas que não tem todo dia em casa. Vai, experimenta a castanha.
O moleque examinou a iguaria, se animou.
– É de chocolate?
Pais têm sempre três opções quando falam com seus filhos: mentir, omitir e dizer a verdade. Silêncio não é opção, é saída pela tangente. Quando o assunto é alimentação, a tentação do vale-tudo pela nutrição é forte. Assim como ganhar tempo, dar uma chance à sorte, provocar o destino para ver no que dá.
– Vamos ver se você descobre.
Ele apanhou as avelãs, sentiu-lhes a textura, o cheiro. Abocanhou uma, atirou-a longe.
– Rodrigo, não cospe!
A madrinha, de longe e atarantada com as velas que não paravam nos castiçais, assistia tudo. Por certo, pensando: “Sai dessa, companheira”.
– Quero Nescau Cereal.
Se as crianças permanecessem com seus níveis de obstinação e persistência preservados na idade adulta, que seria do mundo?
– Já disse pra você que hoje não é dia de comer isso.
Bacalhau, canjica, peru. Algumas comidas obedecem a um finito calendário gastronômico, muito aquém das possibilidades criativas. Para muitos, elas não fazem sentido fora do contexto-padrão. Há também os que batem continência ao relógio (“Não é hora de pipoca”) ou ao figurino (“Você vai comer tomate com leite???”). As regras desenham os cardápios, para que as pessoas fiquem meramente ilustrativas.
– Mas eu quero.
A desistência, às vezes, é a melhor aliada de uma mãe. E madrinhas são as salvadoras da infância – quase tudo se resolve perto de uma. Ela tem ares de fada e pode até ser mãe dos seus, mas não é dos outros – o que lhe desonera um bocado. A Dinda, que dispensara os castiçais e enfiara as velas em pequenas xicarazinhas coloridas de café, apagou a brasa do fósforo entre dois dedos recém-lambidos e foi lá resgatar o afilhado da escravidão dos sabores:
– Vem comigo, meu bem. Aposto como lá na cozinha a gente vai achar alguma coisa gostosa para você comer.
Foram os dois, menino e Buzz Lightyear, voando. O infinito e o além eram logo ali.
Oi, Sil!
Quando eu era pequena eu gostava de comer castanhas justamente porque se pareciam com cérebros! rsrs
Beijo!!
🙂
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Saber se preservar para as lutas inevitáveis é pura sabedoria.
Bom retorno.
Jô
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Quando eu não queria comer de jeito nehum, a minha mãe me oferecia moedas de 50 centavos (ou o equivalente da época) para experimentar novos alimentos. Muita gente se espanta quando conto isso, mas, quer saber? Funcionou direitinho!! Logo descobri que o que me parecia feio era gostoso e nem virei uma pequena mercernária, rsrs!
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Sil… dessa vez eu só vou te dizer uma coisa: EU ADORO TE LER, AMIGA!!!!
Ah, se me permite, uma segunda: QUERO TER TUDO ISSO NUM LIVRO!!!!!
Vc é única.
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“não de pode amar o que pouco se vê”… (penso justamente o contrário… rs… E ver pelo seu modo me deixou pensando…).
Gosto do pano de fundo poético e das imagens que meu cérebro desenha enquanto leio…
Garoto chatinho. Eu o teria amarrado na mesa… rs rs rs…
Cada um com suas artimanhas… Essa é a vida.
Bjs de avelãs,
S
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Que coisa boa ler logo cedo um texto tão natural… já passei por isso e por aquilo… sou mãe e sou madrinha… vivo nos dois lados dessa moeda. É quer saber? adoro ser madrinha da minha afilhada que também é minha sobrinha …
Beijinho Silmara, e um ótimo fim de semana!
Josi
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