Consulta imaginária com o médico que não existe

Ilustração: Michael Young/Flickr.com

Entro na sala que cheira a baunilha. Aboleto-me na cadeira lilás e pergunto, na lata: “O que eu tenho, doutor?”.

Ele me olha por cima dos oclinhos à la John Lennon e diz que, antes, precisa pedir alguns exames. Adianta, porém, o que eu estou atrasada em saber: “Está me parecendo um caso de vida que está ao contrário. Ou do avesso”.

Sempre quis ir a um médico em que eu não precisasse falar nada para que ele soubesse tudo. Que não visse no fígado só um fígado, nem tratasse a dor como final das contas. Que cerzisse meus órgãos descosturados, e eu saísse da consulta com um patchwork feito dos meus cinquenta e cinco retalhos anuais. Nem médico de verdade ele precisaria ser. Há horas que precisamos de gente que não é o que é. Irmão que não é irmão. Professor que não é professor. E assim por diante. Não vale para amigo, nem construtor; confiança e casa são coisas que não podem cair.

Primeiro, o doutor ausculta meu coração. Não me conta, no entanto, o que o músculo involuntário lhe revela. Diz que é segredo. Segredos do coração.

Quer saber quando foi a última vez que me descabelei, bufei pelas ventas, subi nas tamancas, rodei a baiana. “Nesta semana?”, pergunto. Ele me olha novamente por cima dos óculos; preciso entender esse seu sinal.

Diz que precisa examinar minhas raízes, prontamente lhe mostro meus pés. Ele ri. “São os olhos e os ouvidos que eu quero perscrutar”. Preciso aprender ser menos literal.

Conto que meu relógio cronológico está de mal do biológico. “Para isso não há remédio, ele avisa. “Eles não são à prova de tempo. Nem dê corda”. Queria era ter um relógio de corda. Para pular.

Peço uma pomada para as ideias. “Elas coçam à noite, doutor, não me deixam dormir”. Ele sorri um sorriso antigo e apanha qualquer coisa no armário. “Passe isto nelas, uma vez ao dia”. É amostra grátis não-tributada de atitude.

Reclamo da memória. Às vezes, nas minhas pesquisas mentais aparece “page not found”. Ele me recomenda exercícios de repassar, todo dia, como foi o anterior. “E vale mudar alguma coisa, doutor?”. O olhar sobre os óculos, de novo. Gosto desse cara.

Na despedida, o médico de suavidade bege e avental idem não quer cobrar a consulta. Elogia o timbre da minha voz, mas não repara em meu anel de borboleta, quebrado. Receita pílulas brancas para sonhar colorido, e diz que eu só preciso amanhecer.

13 comentários em “Consulta imaginária com o médico que não existe

  1. Passar aqui é como consultar seu médico!!
    Cheirinho de baunilha? Amei.

    Feliz 2012, querida.
    Continue escrevendo e fazendo do meu 2012 um ano mais decorado!

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  2. Também não encontrei um médico assim. Mas existe, existe.
    Médico é um pouco como Deus,ou deveria ser.
    Hoje nem olham pra nós direito, não vêem nem o corpo, quanto mais a alma.
    E todas as nossas dores começam na alma.
    Melhor que ler você, só escrever como você.

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  3. Silmara,
    muitos psicanalistas têm a habilidade de escutar e ajudar a parir o que jaz nos recônditos de nós. Quem sabe exista algum que possa te fazer crer que médico assim como o do teu escrito, exista? Eu aposto que sim! A minha (analista) eu já encontrei, e as sessões com ela (de choros ou risos) tem sempre cheiro de baunilha… Confie!
    Bjs

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  4. Eu nunca sequer pensei em procurar um Psiquiatra ou um Psicólogo, talvez devesse tê-lo feito, mesmo na época do meu Rubicão, quando gostava de tudo – cinema, teatro, escritor teatral, físico ótico, engenheiro ferroviário, Psiquiatra, etc. – e não me decidia por nada !
    Mas a sua paciente imaginária parece estar necessitando de um ombro amigo, mais ou menos como na linha do Dr Miranda do relato da Josi. Uma pessoa que quase não precisa ouvir os clamores, os relatos, os soluços e os problemas de uma alma carente de tudo ou quase tudo. Há horas em que todos os conhecimentos de quase todas as ciência parecem não apontar o caminho ! A Alma humana é um mistério ! Ela é Deus dentro de nós, mas muito poucos conseguem entendê-la.
    Gostei muito !

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  5. SIl… lendo este texto me lembrei no meu ginecologista… o meu primeiro ginecologista. O conheci quando tinha 16 anos. Antes dele ia num outro doutor que não lembro o nome e que num belo dia terminou tudo o que existia entre nós… foi bem assim. Eu e minha mãe estávamos no consultório, ele, com uma voz bem calma, me consultou como de costume e ao final da consulta e ele falou: Josinha, agora vou lhe apresentar a outro cara, é ele vai cuidar de você daqui pra frente, não pense que fico feliz ao terminar com você, quero que você sempe se lembre de mim e venha me dar um oi sempre que quiser… e me pegou pela mão e saiu pelo corredor no hospital e bateu na porta de outro médico. Na porta uma plaquinha indicava: Dr. Sérgio R. Miranda. Ele abriu a porta e um sorriso lindo… era baixinho, gordinho e tinha os cabelos grisalhos e olhos muito puros e me acolheu com um abraço, e à minha mãe com uma saudação alegre, eram velhos conhecidos… Passei a consultar com ele dali pra frente por muito e muitos anos… Ele trouxe ao mundo a minha filha Beatriz, com mesmo carinho que me recebeu acolheu minha pequena em seus braços. Quando eu falei a ele que eu e o Endo estávamos querendo ter um outro filho, os olhos dele se encheram de lágrimas e ele me recomendou a outro doutor… eu fiquei olhando pra ele e vendo seus olhos brilharem com alguma lágrima que teimou e não rolou, apesar da ternura ele era forte e a vida já lhe havia imposto duras penas… ele me disse então que depois do AVC que havia sofrido não poderia mais fazer partos, somente os atendimento do consultório ele poderia fazer sem problemas e que dali pra frente, eu teria que passar por outro especialista… Eu também segurei o que pude o choro pois eram vinte anos e não vnte dias de amizade… Quando saí na rua, chorei. E hoje chorei o que estava guardo há alguns dias, quando li seu texto.
    Há alguns anos, ele parou por conta de um câncer, e há um mês ele descansou. Hoje senti uma saudade doída. O Théo vei pelas mãos do Dr. Pontual, que foi aluno do Dr. Sérgio R. Miranda, meu querido Dr. de olhos luminosos e sorriso largo. Agora ele deve estar bem… onde quer que esteja.

    Um beijinho
    Josi

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  6. Vou te emprestar “Lie to Me” e vamos descobrir DE FATO o que é esse olhar que pode ser tudo ao cubo!!
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    (aaaiiimmm… amei essa crônica!)
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    Ando crendo que nem médico, nem engenheiro, nem deus, nem diabo e MUITO MENOS psicanalistas conseguem responder qq coisa sobre noites que não amanhecem, pensamentos que não adormecem e vida sentida como se tivéssemos vestido a alma do avesso.
    Bjs amiga que REALMENTE tem um tom de voz lindo!

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  7. Chère Silmara, à parte o não pagamento (da sessão), esse médico era bem freudiano! Vc descreveu com poesia uma bela sessão de anàalise.bjs lia

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