O rei, a imigrante e a falta de saudade

 

Vovó Carmela e vovô Antônio (centro) e a filharada. E a data, que só reparei depois.

Elvis não morreu, ao contrário da Vovó Carmela. Ela morreu no mesmo ano em que ele, já que é assim, não o fez. Sei muitíssimo mais dele que dela. Estranho?

Faz trinta e quatro anos e dois dias que ela partiu. Ele, trinta e quatro anos e cento e oito dias. Dele, se fala – e muito. E dela?

Ele é famoso. Ela não. O Google tem setenta e sete milhões e quinhentos mil resultados para o nome do rei do rock. Cento e sessenta para o dela. E nenhum é, efetivamente, sobre ela. Deveria existir a “Deuspedia”. Cada ser humano com seu verbete, atualizado por Ele e seu staff de anjos.

Vovó Carmela é minha bisavó, mãe da minha avó. Sou, por ora, a penúltima bonequinha da matrioska; a última é Nina, minha caçula. Ninguém a chamava de bisavó, nem de bisa. Já considerei seu nome pavoroso, sentia pena de uma prima que fora batizada em sua homenagem. Hoje, não mais. É nome tão bonito.

Na casa da vovó Carmela seus filhos, netos e bisnetos se reuniam em compridas tardes de sábado. O invariável cardápio: chá-mate dulcíssimo e pelando de quente, o pão com manteiga. O chá era servido nas xícaras de bolinhas, de porcelana tão fininha quanto a pele da matriarca. Quem ganhava sua fatia de pão podia ia brincar lá fora. Quantos passarinhos alimentei no quintal com minhas migalhas chovidas? E quem ficou com as xícaras? Não é só a infância que é cheia de questões.

Eu não conversava com a vovó Carmela nessas visitas. Velhos têm mania de falar com as crianças através dos seus pais, mesmo que elas estejam presentes, como se não fossem capazes de responder sobre suas vidas. Eu estava na cozinha, mas era à minha mãe que ela dirigia as perguntas: “Ela vai bem na escola?”. “Ela quer mais pão?”. Eu também não perguntava nada sobre ela, nem a ela, nem a ninguém. Só queria saber do Elvis. Eu, que derivei dela, não dele, ia bem na escola. E, sim, sempre queria mais pão.

Dela, sei tão pouco. Só que tinha imensos cabelos cinza-claro, permanentemente enrolados num coque e presos num pente-fivela. Que usava vestidões compridos e arrastava os chinelos. É todo meu conhecimento. Sequer de sua voz me lembro. Já do Elvis… Minha irmã me ajuda, por e-mail:

“Carmela Mameli nasceu em 16/05/1889, filha de Diogo Mamelli (o pai tem 2 L) e Elena Pucci. Nunca consegui saber a cidade, só sei que é na Sardenha. Casou-se em 30/10/1908 em Jacutinga e morreu em 30/11/1977 em São Paulo. Não lembro do quê exatamente ela morreu, lembro que ela tinha uma hérnia enorme na barriga, de longa data… Lembro também que depois que ela quebrou a perna não saiu mais da cama e morreu logo depois”.

Ela, que tinha alguma coisa com o dia trinta (a foto que ilustra esta história foi tirada em 30 de novembro de 1958, conforme anotação feita na própria). Ela, que não sei se gostava do Elvis. Ela, que não está always on my mind. Será que ela loved me tender? É assim que junto tudo: as letras das canções do rei do rock, a imigrante de onde me originei e a minha confessa falta de saudade.

Quando eu ficar bem velhinha, devo cuidar das minhas roupas, chinelos e penteados. É deles que, provavelmente, meus bisnetos se lembrarão. Mais, muito mais, que da minha voz. Que, aliás, nunca aprendeu a cantar nada direito.

8 comentários em “O rei, a imigrante e a falta de saudade

  1. Olá! Sou bisneto da irmã dela, Amalia Mamelli, que foi casada com Francisco Lupinacci. Estou fazendo a árvore genealógica da família e gostaria de saber mais sobre os Mamelli (Mameli, Mamelis… em cada documento tá escrito de uma forma…). Vamos manter contato pra trocar informações! Um abraço!

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  2. Eu também sempre quis saber com quem ficou as xícaras? Sinto também muita saudades desse dias ,e da gente brincando no quintal. Bjs .

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  3. Cuide dos trajes, penteados… mas também deixe uma foto bem bonita na rede!
    O futuro… Ah! Esse bem que promete ser tecnológico. E você, com sua inteligência e tantas “palavras bonitas”, terá milhões de referências (todas de você!). Para os netos, bisnetos e tataranetos… Creia!!!

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  4. Agora que tenho netos, pergunto-me como (ou se ) se lembrarão de mim.
    Embora linda a maneira como vc escreveu, é triste pensar que um dia podemos ser apenas uma figura numa foto desbotada.
    E hoje, com as fotos digitais, quem sabe nem isso…Ficaremos perdidas dentro de um pen drive, ou de um cd…rsrs

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  5. Olá, querida!!
    Sem dúvida, estás inspirada hoje (além de todos os outros dias, hehe).
    Lindo, tocante e realista.
    Melhor de tudo, é vê-la exercitando algo que não faço com frequência, que é se imaginar com os bisnetos (acho que tenho um medinho estranho de não ser tão logeva).
    Ótimo final de semana!!!
    bjs
    Cris Prado.

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  6. Não sei se tenho vontade de te beijar ou de te bater por não escrever logo seu livro.
    Delícia te ler, Sil… delícia viajar no tempo e nas paisagens das suas letras, amiga. Bjs e mais bjs.

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  7. Vestígios, memórias e saudades nem sempre tão saudosistas assim. Vezes me pergunto de quantas memórias podemos ser feito.
    Será que a sua Carmela e a minha Thereza existem em nós num grau maior que a mais simples e complexa memória/lembrança?
    Nunca saberemos. À nós, resta o conforto das poucas memórias, mesmo que contadas…
    Bjs de dezembro.
    Si

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