Desenhações

"Casamento de sóis", Nina, 2011

Filhos em ação: dezenas de folhas de sulfite e milhares de canetinhas espalhadas pelo chão da sala. Está certo, não são milhares. Duas dúzias, no máximo. Há um arco-íris sobre o tapete, qualquer hora descobrirão que é voador. Ensaio mandar recolher tudo – as pontas porosas são cruéis com a mobília. Leio a paciência tatuada em meu antebraço. Eles precisam de ar.

Vejo seus desenhos com olhos de mãe, ávida por sinais que garantam que eles são crianças alegres. Procuro sorrisos nos traços humanos, paz nos cenários caseiros, harmonia nas paisagens. Além do evidente, nunca sei direito o quê identificar; sigo considerando tudo bonito. Sei que ela é romântica e sempre me desenha de cabelos compridos. Ele passou da fase dos trens, ampliou seu repertório e faz plantas arquitetônicas com cortes transversais. Sei também que não gostaria de descobrir nos retratos algum resultado da minha habitual impaciência materna. Quando uma tatuagem alcança a pele do coração?

Na idade deles, meus desenhos eram feitos com canetinhas Sylvapen, unânime objeto de desejo da criançada. O luxo era o estojo com doze. Na maioria das vezes, porém, eu tinha que me contentar com o de seis. Agora as crianças ganham estojos com vinte, trinta, cem canetinhas. Não há cor impossível.

Hoje, especialmente hoje, eu precisava da minha mãe. Para saber dos olhos dela quando via meus desenhos. Se também buscava neles evidências de que tudo estava bem com sua caçula. Não lembro se ela guardava algum consigo, como eu faço com os dos netos que ela não conheceu. E também nunca mais fiz desenhos para ela. Ela não pediu mais.

Quando pequena, grávida de imagens, eu dava à luz macieiras carregadas. Montanhas simétricas com o sol por detrás do vale formado. Algumas esquisitices. Mulheres de perfil, mania perpetuada nos cadernos até depois da adolescência. Quando desenhava pessoas, logo alguém perguntava “Quem é?”. Coisa mais aborrecida. Não era gente de verdade, era gente inventada. Por via das dúvidas, não faço essa pergunta aos meus filhos. Faço outras. É minha maior contribuição à imaginação deles.

A parede da sala de jantar é o lugar das exposições de arte temporárias. Nela estão algumas de suas obras, grudadas com durex. Amanhã vai ter mais uma. Se eu ainda souber desenhar maçãs.

"Hora do banho", Luca, 2011

6 comentários em “Desenhações

  1. Silmara, querida!
    Adorei… E: “Quando uma tatuagem alcança a pele do coração?”, já me peguei pensando que gostaria que elas atingissem a alma…Mas suas palavras chegam lá. Sempre doces 😉
    beijo

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  2. Puxa, Silmara! Você, sempre nos fazendo carinho nos pensamentos!
    Enquanto seu filhos fazem exposição de desenhos, você faz exposição de ideias.
    Um beijo colorido!

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  3. Minha geladeira não é branca nem prata…. minha geladeira é multi-colorida dos desenhos de meus pequenos. Amo cada um deles!
    Alguns ganham molduras próprias e um lugar de destaque nas paredes da casa.
    Tenho pensado em comprar uma geladeira, tipo americana, só pra poder ter mais espaco de exposição.

    Em uma outra nota Sil… às vezes tenho tanta vontade de falar com minha mãe sobre meus filhos, sobre suas descobertas diárias,
    suas travessuras e aventuras, sobre os conselhos práticos de como agir, do que fiz quando criança e não me recordo mais.

    Ai… ai… você cutucou mais fundo hoje.

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  4. Que lindo teu texto! Tão poético!
    “Grávida de imagens…”, que desenhações de letras andam por teu cérebro hein?! As montagens ficam especiais ao visitarem o teu papel (ou o teclado, rs). Vc sempre a parir coisas belas… que dom!
    Bjs
    Marisa

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  5. Vontade de voltar lá atrás, e fazer ainda mais, curtir ainda mais, enxergar ainda mais a vida em cada detalhe. A paciência está na superfície da sua pele… mas a beleza está tatuada na sua alma. Vc.. pessoa linda.. de Luz.

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  6. Leve, agradável e no final da leitura, deixa a gente imaginando uma maçã entre um sorriso largo. Adoro essas exposições na sala! Farei uma para a filha que não terei.
    Será que ela vai gostar? (tomara que sim)
    Bjs.
    Si

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