Poesia para gato

Ilustração: Johanesj/Flickr.com

Ontem li um poema da Adélia Prado para o gato. No intervalo de botar pijama, apanhei o livro sob o criado-mudo e o abri numa página qualquer, brincando com a sorte. “É onde cair”, avisei. Enrodilhado na cama, em sua eterna roupa de dormir, ele bocejou e me encarou, como quem diz: “Feito”. Gatos falam com os olhos.

Vesti a blusa, limpei a garganta e comecei:

Hoje de tarde

pus uma cadeira no sol pra chupar tangerinas

Nunca estudei se gatos gostam de poesia, ou se preferem a prosa. Falei baixo, a métrica felina depende do volume, eu sei. Tolerante, ele foi afinando as orelhas para meu recital, os pequenos movimentos indicando se eu agradava ou não. Gatos escutam com os bigodes, mais que os ouvidos. Os olhos, mesmo semicerrados, tudo veem.

e comecei a chorar,

até me lembrar de que podia

falar sem mediação com o próprio Deus

daquela coisa vermelho-sangue, roxo-frio, cinza.

No ‘cinza’ ele se levantou. Não crê, nem descrê em Deus; apenas não o sabemos – ele e eu – do mesmo jeito, já conversamos tanto sobre isso. Temi que pulasse da cama e me deixasse a sós com minha voz. Ninguém em casa queria ouvir verso às vinte e três horas e cinquenta e quatro minutos de um dia frio (não roxo). Eu contava com sua audiência noturna; era para mim que eu lia.

Me agarrei aos seus pés:

Vós sabeis, Vós sabeis,

só Vós sabeis, só Vós.

Do que sabe um gato? Que conhecimento se arquiva em uma cabeça tão pequena, do tamanho duma fruta de chupar? Lembranças de ir e vir pelas ruas, antes de aportar aqui, achar bom e resolver ficar? Acolher um animal sem rumo é abrir os braços para todos os deuses.

O bagaço da laranja, suas sementes

me olhavam da casca em concha

na mão seca.

Era apenas uma rotação, dentre tantas que seu dia de gato costuma ter. Recolheu o rabo, deitou-se de novo. Coloquei a calça do pijama, só ele, só ele, sabe o quanto este é velho. Faltavam as meias da noite anterior, de paradeiro desconhecido. Busquei outras na gaveta.

Não queria palavras para rezar,

bastava-me ser um quadro

bem na frente de Deus

para Ele olhar.

O gato pardo, penso, gostou da Prado. Ele, que tem olhos azuis iguais aos do Jesus no quadro que ficava na parede do quarto dos meus pais, sobre a cabeceira. Fechei o livro, ele lambeu uma das patas. E perguntou que gosto tem tangerina. Nunca comeu.

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“A pintora”, in A duração do dia

9 comentários em “Poesia para gato

  1. Texto muuuito lindo, um verdadeiro presente para o coração de felinó-filas + fás da Adélia Prado que nem nós !
    Leio o post num fim de tarde chuvoso, e meu “pretinho” Péricles me contempla…
    Afinal, precisamos de tão pouco para ter momentos como este, de mágica felicidade.
    Obrigada, Sil !

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  2. Será que você foi um quadro na frente do gato? Mas com uma diferença: lendo Adélia !! rs….
    E que gosto a tangerina poderia ter para ele?

    O mais lindo nisso tudo é a atitude, a observação e a certeza de que nada é o que parece ser e que há tanto mais em tudo. Tanto.

    Nossa gostei MUITOOOO desta crônica. Muito.
    Beijos e muitos fios pra vc, sempre!

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  3. Silmara, nesse fim de semana perdi um dos meus gatinhos, o preferido, depois do Pingo( se é que eles não sentem ciúme das nossas preferências…acho que, não.). Provavelmente foi envenenado e, se a morte já é difícil aceitar, muito mais, assim: sem motivo, sem “precisão”…
    Ontem conheci um outro filhote, clone dele, embora tenha consciência de que gatos são diferentes, um do outro: cada um, com a sua “gatinolidade”. Mas estou disposta a começar tudo de novo e investir meus sentimentos nesse outro, tão necessitado de cuidados e carinho.
    Estou dividindo isso aqui com você, porque entende a língua dos gatos.
    Um beijo!

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  4. Gatos, cães, cavalos, nos olham e poetisam. Doces, e sem fazer esforço algum, nos chamam pra nos ver antes que o mundo fosse mundo, quando as almas coletivas passeavam livres por onde quisessem…já fomos almas coletivas, mas ainda voltaremos a ser, sei disso. Afinal, tu’alma toca a minha.

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