Uniformes

Foto: arquivo pessoal

O útero é o primeiro uniforme que vestimos na vida. O único, verdadeiramente, a nos igualar perante o mundo. Com ele, somos só bebês em progresso. Um bando que ainda não conhece outro código de indumentária, nem precisa provar nada a ninguém. A não ser mostrar a papai e mamãe, no ultrassom, que o coraçãozinho está batendo. E bem forte, de preferência. Ao nascer, a igualha se vai com a placenta, e outras fardas virão ao longo da existência. Uniformes, geralmente, servem para lembrar que todos devem manter-se no grande caldeirão das ideias iguais.

No pré-primário, minha mimosa jardineira xadrez em branco e cinza, em par com a indefectível camisa branca, nem sonhavam com as fáceis camisetas em malha e bermudas de tactel que meus filhos usam para aprender o beabá. Fino e elegante, o traje guardava certa formalidade do universo adulto e, quase sempre, não combinava com as estripulias típicas dos seis anos. Depois do útero, a jardineira era o atestado da minha pertinência ao iniciático grupo que, em meados dos anos setenta, hasteava bandeira no pátio e cantava o hino nacional com a mão direita sobre o coração (o que eu achava meio chato, era antes do recreio e eu sempre estava com fome). Que sabia de cor a letra de “Eu te amo, meu Brasil” (eu cantava bem alto enquanto ouvia o compacto na vitrola). A canção, espécie de uniforme mental, foi uma maneira eficaz de manter muita gente – crianças e adultos – longe de saber o que rolava nos becos, sótãos e porões da ditadura.

Primário. A jardineira cedeu lugar à saia cinza de prega-macho com camisa e meia três-quartos brancas, mais sapatos pretos. Uniformes escolares, hoje sei, poupam as roupas de passeio. E fazem com que ninguém se sinta diferente de ninguém – essa é a parte menos interessante. Há o aspecto estratégico também. Um bando de gurizinhos do maternal vai passear no zoológico. Ajuda um bocado as professoras a turminha inteira de camiseta vermelha. Assim elas podem identificar, de longe, se um deles planeja um tète-a-tète com o leão.

Escolas inventam uniformes para a rapaziada e, metidas neles, as classes sociais se amalgamam. Raramente, porém, as regras descem aos pés. Só se percebe quem não tem direito o que comer em casa pelos sapatos. Assim, cada um vai com o que quer – e pode. A colega na fotografia de recordação do primeiro ano sabia disso. Foi a única a posar de chinelos. A única a não reproduzir a delicadeza das pernas cruzadas. E, quis o acaso ou não, a única com saia fora do padrão também. Não me lembro dela. Crianças diferentes fatalmente perdem o nome também. Quem notou? Sua mãe, ao ver a filha no retrato emoldurado em papel-cartão, tão diferente ao lado dos colegas ensapatados, escondera onde seu choro? Uniformes, às vezes, revelam seu viés mais triste: a acessibilidade concedida pela metade.

Ginásio. Saiu a saia de prega-macho, entrou o insípido avental branco. Das piores ideias da diretoria, posto que o jaleco deixava todos com ares de médico, farmacêutico ou cientista maluco. Fácil de tirar e por, não raro ele era abandonado sobre os bancos e chãos imundos durante algum intervalo ou momento de rebeldia adolescente. Ao final do ano, ele não passaria de um trapo, indesejado até pelas mães como pano de limpeza. Ao menos, a peça permitia certa liberdade de expressão no vestuário, ainda que oculta. O que, talvez, ainda não facilitasse muito a vida da colega dos chinelos.

Colégio. O nivelamento se dava apenas pela camiseta com o logotipo da instituição. Calça? Qualquer uma, desde que jeans. Houve, por um tempo, a não-obrigatoriedade do uniforme. Fiz a festa. Desfilei com confecções próprias e até pintei uma camiseta com meu próprio nome, escrita em letra cursiva sobre o peito, num arroubo exibicionista e autoafirmativo. Era meu uniforme exclusivo, pessoal e intransferível. Nunca houve foto de recordação com a turma, como no primário. Lembro-me bem, no entanto: todos tinham sapatos. Ou, ao menos, agora tinham.

Cursinho pré-vestibular. O uniforme perdeu sua força e passou a se revelar nas apostilas. Carregadas junto ao peito, embrulhadas nas mochilas ou arrastadas para lá e para cá, eram elas a me identificar nas ruas, ônibus, metrôs. Quilos de informação, deixando meu cérebro inutilmente gordo. Os sapatos já não importavam tanto. Um ou outro colega resolvia ir de chinelos às aulas, só para contrariar. Hoje, quem diria, chinelo é cool.

Faculdade. De outra natureza, agora os uniformes estavam mais próximos das fantasias. Eram grifes, viagens espetaculares de férias e carros – não meus –, autenticando, mais ou menos como os pirralhos no zoológico, quem era quem. Meu uniforme costumava destoar da maioria. Guardada a devida proporção, eu era a garota dos chinelos.

E chegou o dia que me libertei dos uniformes. Nem todos precisam de um perante a lei. É a minha constituição.

7 comentários em “Uniformes

  1. Eu gostava do meu também era a camisa com o logo shortinho bem acima dos joelhos meias 3/4 eu gostava muito as meninas de saia de pregas camisa com logo e meias 3/4 ninguém cantava ninguém todos tinha índole e educação e se respeitava.

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  2. Confesso que adoro um uniforme, sempre gostei. Na minha pré escola (no Uruguai) tinha saia cinza, camisa branca, gravata bordô (sim gravata) e blaser azul marinho. Me achava o máximo, gente grande e importante. Na primeira escola do Brasil, ufa, que bom, tinha uniforme: saia azul marinho toda de pregas e camisa pólo branca com o logo da escola; o moleton era incrível! Com os anos passando e a troca de escolas o uniforme foi ficando para trás. Mas tenho boas lembranças deles. Ainda gostaria de poder usar um…..

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  3. Agora cê me pegou de jeito, Silmara.
    Inevitável não lembrar da frase “- ele veio com o sapatinho da irmã, coitado!” Naquela época, tinha eu meu uniforme que permitia uma calça de pregas e meu sapatinho branco, de lacinho. Certa vez, tive que raspar os cabelos por causa de um ferimento que nunca sarava (eu juro que não era piolho, que eu tive, mas depois). Não deu outra, não tinha peruca, nem nada e eu fui confundida com um rapazinho… E que tristeza eu carreguei por uns dias. Depois, meus crespinhos voltaram, e a alegria de tê-los de volta, com amiguinhos se retratando. Não tem preço!!! Quase quarenta anos se passaram, mas seu post fez parecer que “foi ontem”. beijos,

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  4. Sil, parabéns! Mais uma pérola…. Lembro-me mto bem dos uniformes… E ainda tinham os mais gastos (que tbm escondiam um pouco a origem da pessoa). Interessante vc falar nisso… Parecíamos todos iguais, mas, na realidade, havia sempre uma pequena diferença, como a da sua foto…. Bjs!!!

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  5. Olá, lindissima!
    Fiquei emocionada, sabia?
    Adorei!
    Estou mais emotiva hoje, pois é aniversário de 5 anos da minha filha (Julia)e eu estou trabalhando (felizmente/ infelizmente, tudo junto).
    PARABÉNS pelo post!
    bjssssss

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  6. Revivi a minha história na sua história e levo pro meu dia uma nostalgia que vai fazer a dierença nesta terça-feira. Meu dia hj vai se despir do uniforme rotineiro e vai usar chinelos. Obrigada, Sil!!!

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  7. Fiz uma viagem, afinal, somos contemporâneas: vesti jardineira cinza e saia de prega-macho( ou, pega-macho? rs).
    Não reparei o detalhe da descalçada na foto, a não ser pela sua menção. Não dá pra se ver o rosto dela, mas, pelas pernas, parece estar constrangida. Pernas que falam…
    Falando em uniformes, outro dia vi uma novela imitando a mexicana Rebeldes: todos engomadinhos, num uniforme de escola inglesa; as meninas, todas lindas, em minissaias não permitidas no meu tempo de escola…tão longe da realidade, tão mauricinhos e patricinhas! rs

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