(Des)Empregada II, a traição

Foto: Amigomac/Flickr.com

– Alô?

– Eu queria falar com a Silmara.

Seguem-se dois minutos de conversa. É de um certo RH, pedindo referências sobre minha ex-empregada, aquela que pediu as contas. Como num interrogatório, respondo às perguntas com ‘sim’ ou ‘não’. Sou a ré. Condenada, talvez, por não ter aumentado o salário da ex-ajudante e ter tapetes demais. Meu desejo, porém, é abrir o coração com a moça do outro lado da linha. Chorar as pitangas. Lavar a roupa suja (opa). Contar como anda a vida depois da saída dela. Desabafar que tenho pensado em mudar minha cama para a masmorra da área de serviço, para ficar mais prático. “Você sabe o que é desencardir vinte e oito meias por semana?”. Em vez, recolho-me à condição de ex-patroa, cuja função, agora, é fornecer subsídios para a nova carreira da ex. Ao final da ligação, tasco a pergunta:

– De que empresa é?

– Da padaria tal.

Então é isso. Vou ser traída com o padeiro.

Conheço o lugar. E logo começa o devaneio: chego ao balcão e peço meia dúzia de pãezinhos. Três moreninhos e três branquinhos, para agradar os gregos e os troianos do meu lar. Espicho o olhar e reconheço a cabeleira, apesar da redinha. É ela, ajeitando na cesta os pães recém-saídos da fornalha. Sou fina, cumprimento. “As crianças, como vão?”. Emendo: “Veja também umas broinhas, por favor? A minha nova ajudante a-do-ra!” – é meu inocente blefe. Ela entrega o pacote com os pães, ainda quentes, por cima do balcão. Faço questão que note minhas unhas, feitíssimas, simulando distância de qualquer tanque (ela não sabe, mas comprei luvas de látex). Despedimo-nos com polido afeto, e no som ambiente da padaria começa a tocar “I will survive”, da Gloria Gaynor. Na tela aparece “fim”, junto com os créditos do meu curta-metragem imaginário. Não sei porque não fiz cinema na faculdade.

E se eu revelar certas coisas sobre o perfil da ex? Não, isso não. “Amai-vos uns aos outros”, ensinou Jesus. Que, por certo, não tinha empregada quando proferiu isso.

Declaro minha inveja de quem tem a mesma empregada há vinte anos. A que é convidada para os batizados dos filhos de quem, um dia, ajudou a trocar as fraldas. A que ganha presente de Natal até da madrinha do patrão. Aqui, elas mal completam o primeiro ano e já dão o pinote. “A casa é muito grande, Dona Silmara”. “Muito gato, Dona Silmara”. “É pouco tempo para fazer tudo, Dona Silmara”. “A senhora paga pouco, Dona Silmara”. Os opostos – muito e pouco – não as atraem. E a Dona Silmara compreende tudo. Só não compreendo como elas conseguem passar uma camisa em menos de trinta minutos e manter os Tupperwares organizados no armário.

As compadecidas vizinhas me param na rua, “E aí?”. Finjo serenidade, demonstro paz interior. Na realidade, tenho encarnado a Rainha de Copas, como na história da Alice, quando percebo vestígios de Nutella na cortina: “Cortem-lhe a cabeça!”

Nem tudo são trevas, porém. Gosto da casa vazia, da ausência de corpos estranhos zanzando na minha intimidade. De acordar sem o ronco do aspirador de pó e tomar café-da-manhã na cozinha sem trilha sonora sertaneja. Mas meu pão com manteiga jamais será o mesmo.

Continuo a entrevistar mais candidatas, e nada. De qual crise o noticiário fala? Só sei das minhas: de nervos, de identidade e de alergia ao Veja Multiuso.

Paciência, é preciso tê-la. Na vida, nem tudo é Perfex.

9 comentários em “(Des)Empregada II, a traição

  1. kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk, Silmara voce me mata de rir!!!
    A vida toda tive empregada em casa, agora, morando nos EUA, nao tenho… E nao sinto falta nenhuma!!!
    Minha mae teve 4 empregadas, duas a cada temporada… as duas primeiras ficaram la em casa por 16 anos, as duas segundas por 24 anos… Tempo de casamento da minha mae? Pouco menos de 40 anos, pois ela morreu no ano que faria 40 anos de casada.
    As ultimas ainda trabalharam um tempo com meu pai e a minha madrasta, mas ciumentas que eram, acabaram pedindo conta, pois nao davam conta de ter outra rainha no trona da D. Maria. Possessividade absoluta.
    A cozinheira ainda trabalhou na minha casa, apos meu divorcio, por mais tres anos, e so foi demitida por que me mudei para os EUA, nao fosse isso, estaria comigo ate este momento, apesar das enjoadices, e dos resmungos… Ela era boa companhia, e eu tinha meu paozinho quente no cafe da manha todos os dias…
    Beijos mill, Paula

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  2. Me mudei para um país de terceiro mundo onde há poluição, burocracia e desrespeito no transito. E também há empregadas. Bendito terceiro mundo!!!

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  3. Posso dizer que quase chorei com o seu texto, me vejo na mesmíssima situação e para piorar, acrescente a ela uma senhora barriga de 37 semanas e 1/2 e 3 andares de escada com 8 degraus cada (cozinha p sala/sala p quarto/quarto p quarto). Pos é, a minha também se foi, malandra, chegou em um dia e disse : “a partir da semana que vem eu não venho mais, porque meu filho de 10 anos fica 1/2 periodo sozinho em casa, e fica ligando para o pai dele, e como somos divorciados, o pai dele disse que vai pedir a guarda e alegar abandono de incapaz se eu continuar deixando ele sozinho ou com o irmão de 17”.
    Posso dizer se tivesse algo nas mãos jogava nela! Fiz cara de tristnha, aleguei que deixar só, 1/2 periodo aos 10 não é abandono de incapaz, tentei faer charminho, chantagem, enfim…só sei que minha situação é esta: Grávida, 3 banheiros, 2 quintais, 3 lances de escada e um tempo seco danando que faz em SP, jogando pó sob os móveis diariamente. Posso chorar?

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  4. Sil, nenhuma pretensão em dizer-lhe o que fazer ou votos de melhor sorte.
    Apenas risos pela delícia do texto!

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  5. Sil,

    Muito bom, como sempre!
    E graças ao bom Deus, desta vez, seu post não está sincronizado com os meus sentimentos … a empregada de casa (ou babá das crianças, como a Nat adora reforçar sempre) parece estar firme e forte, frequentando as festas das crianças e ganhando presentes de Natal …. espero que isso se perpetue …. 🙂

    Bjs
    Rose

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  6. haha…
    achei que a traição era pior, na casa de uma amiga, por exemplo, um parente.
    ao menos ela… subiu de cargo?

    no mais.. torceremos para seu sonho ser realizado.
    e espero não ter que passar por isso um dia. sofro tanto com casa também.

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  7. Ahhhh, Silmara! Mas eu sei bem o que é isso. Já vivi o drama do filho abandonado (pela empregada). Fiquei um fera, frequentei delegacia, fiz boletim de ocorrência. Porque com meu filho (o Moisés) não se brinca!
    beijos,
    P.S. Espero que a situação relatada na crônica seja apenas no campo das ideias bacanas que você tem e não fruto da realidade. Pois é duro viver sem as nossas “fazem tudo” (ou quase tudo)!

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  8. KKKKKK Sil, q bom ler vc logo de manhã e rir muito….Mas olhe pelo lado bom: uma pequeníssima frase q vc escreveu: de que é bom não ter corpos estranhos zanzando em sua casa….eu prefiro! hahahahajs opte por uma diarista. bjs vizinha pra sempre! 😀

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