(Des)Empregada

Ilustração: DrasticJo/Flickr.com

E a empregada pediu as contas. Cuidar de um lar com oito seres vivos não era exatamente seu plano de carreira. Lá fui eu para o tanque, a pia, o ferro de passar e, sobretudo, para o inferno. Sem garantia de purgatório, muito menos paraíso. Queria era ver Virgílio desentupindo ralo. Beatriz com um esfregão nas mãos. Dante colocando o lixo para fora. Essa sim, seria a divina comédia.

Desde o primeiro dia após o último do aviso-prévio, descubro, com a mesma surpresa de uma exploradora, partes da minha casa nunca dantes navegadas. Frestas e cantinhos impossíveis de limpar, compartimentos secretos, xícaras desconhecidas. Perguntas que não querem calar surgem a todo instante: por que gatos soltam tanto pelo? Como assim, o forno não é autolimpante? Quem guardou estas tranqueiras na área de serviço? Como se limpa o box do banheiro? Quem inventou as camisetas brancas? Por quem os sinos dobram? Qual o sentido da vida?

Deus criou o mundo. Assim que tudo estava limpo e arrumado, descansou. Num lar, a lenda divina não se aplica. É deixar tudo bonitinho para, dali não sete dias, mas sete horas, estar quase tudo novamente por fazer. É como se os dias fossem um eterno “dia da marmota”, igual ao que aquele repórter vive no filme “O feitiço do tempo”. Pois juro: lavei esta calça ontem, e lá está ela no cesto. As atividades domésticas se repetem o tempo todo, numa espécie de maldição. Não há fim, não há conclusão. Não pode haver felicidade numa caixa de sabão em pó. Nem líquido.

Lembro da amiga que costuma evocar “Cry Baby”, da Janis Joplin, em dia de faxina. Cada um sabe da sua dor. Cada um busca sua reza. Nessas horas, vou de bossa nova. Para lavar a varanda enquanto a tardinha cai. Porque barquinho, que é bom, não tem. Água, só no balde.

E a penitência vai longe: a lei do silêncio é clara, nada de barulho depois das vinte e duas horas. Porém, o cuco vai dar meia-noite e o aspirador de pó é quem vai cantar. Sou uma fora da lei. O indelével tempo não facilitou para mim durante o dia. Então, vai de noite, mesmo. Com direito a um bombom entre um tapete e outro. Caloria entra, caloria sai. Quem precisa de academia?

Vizinhas compadecidas tratam de indicar substitutas. “Urgente”, imploro. Na entrevista inicial, por telefone, trato de pintar um quadro ameno: só tenho duas crianças. A casa tem só três quartos. São só quatro banheiros. Só. Para ver se ela também se compadece e topa vir. O fato é que nenhuma tem dia livre. Quando tem, combinamos, “Na segunda, então?”. E ela não vem. Nem telefona. Se homens são de Marte e mulheres, de Vênus, as empregadas domésticas serão de qual planeta? A questão, talvez, não seja o planeta, mas quais e quantos ônibus elas pegam para vir trabalhar.

Uma mulher sem sua ajudante é capaz de qualquer coisa para restabelecer a ordem no lar. Na situação de (des)empregada, boto a família toda para trabalhar, inclusive os menores de idade. Que venha o fiscal do conselho tutelar. Pois dou-lhe uma vassoura, também. Vale tudo. Até estratégias antiéticas, ilícitas, feias. Afinal, o sétimo mandamento, “Não roubarás”, não fala nada sobre surrupiar a empregada do próximo.

15 comentários em “(Des)Empregada

  1. É… Passei 2 anos sem faxineira, por acreditar no meu próprio “bom-senso”, que dizia que, morando sozinha num quarto-e-sala, era uma absurdo ter empregada… Quando deixei de lado essa bobagem e contratei a Eunice, curei-me de uma crise alérgica “crônica”, pois alguém tinha, finalmente, limpado a casa direito, rsrs!

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  2. … e depois dizem que o pobre Sísifo foi condenado ao trabalho sem fim… Será que na Grécia Mitológica não tinha louça para lavar?
    Obrigada pelo alento semanal. Ler suas crônicas sempre me agradam.
    um abraço, vou passar roupa agora,
    Sandra

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  3. Não há o que console numa hora dessas, fica sempre o sonho da casa autolimpante, que é o que uma casa parece quando há nela uma empregada. Continue sonhando, um dia teu sonho se realiza! Por enquanto, respira fundo, não pensa muito e vai!!!
    abç
    Marisa

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  4. Só não digo que ri mais, pois já passei por isso algumas vezes e sei que é enlouquecedor, mesmo.
    Outro dia meu filho do meio, adolescente, quis ajudar na cozinha, lavando a louça. Disse-lhe que o pior serviço é o doméstico, exatamente porque: é um eterno retorno! rs
    Olha, se eu fosse sua vizinha, poderia dar-lhe uma mãozinha.
    Veja, se lhe serviria: gosto de crianças e de gatos( gatos, mais que crianças!), gosto de cozinhar, mas não gosto de lavar, nem passar…
    Como estou longe, em vez da mãozinha ofereço-lhe um tapinha nas costas. rs
    Mantenha-se lúcida, por favor! rs

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  5. Ai, ri muito….vi-me em você…Não, não tem nada que amenize, mas é imprescindível, como comer, dormir e tomar banho. Os demais moradores não se dão conta do trabalho que dá e ao chegarem em casa, só conseguem ver tudo arrumado (enquanto dura) e acham natural e normal….eu é que sei quantas vezes tropeço nas centenas de dinossauros espalhados everyday!! recolho-os ou o faço recolher, e dali duas horas, criam vida própria e estendem-se no tapete da sala, nos braços dos sofás, no caminho…aff

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    1. Perfeito!! Só faltou a parte do sofrimento q nos colocamos qdo levamos esse pé na bunda daquela q tanto fizemos, dinheiro a mais, presente pros filhos, comidas compartilhadas do ovo frito ao filet mignon, roupas doadas em perfeito estado etc etc etc…e por fim nos trocam pra trabalhar na industria acreditando que lá tudo vai ser melhor…..queria ser uma mosquinha pra ver elas chegando atrasadas e sendo descontadas, faltarem com justificativas medicas e nao apresentarem atestado medico, se intrometerem na conversa do chefe sem nenhum criterio ético e por ai vai….realmente ainda acreditam que a industria é o melhor lugar so para nao terem registro de domestica na carteira….doce ilusao e auto preconceito…..

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