Colecionadora de devaneios

Caríssimos leitores: acho que descobri por que vocês não estão conseguindo postar comentários. Agora o formulário fica lááá embaixo, finalzão da página. Viram? Espero que seja isso. Se mesmo assim não der certo, me falem? Por e-mail ou no Facebook… Só não me deixem só. Beijos,

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Ilustração: Silvia Falqueto/Flickr.com

Devaneio recorrente número 1. Boto o pé na loja de roupas, aquela a qual cobiço integralmente prateleiras e cabides, e a recepção é retumbante. Confete, serpentina e vuvuzela: sou a milésima freguesa a pisar ali e, para comemorar, ganho um vale-compra no valor de três mil reais. Quanta modéstia. Eu não podia imaginar logo dez mil? (Toda imaginação é uma espécie de pedido.) Mente pobre é uma droga. Atrapalha até devaneio.

Devaneio recorrente número 2. Sou a entrevistada da noite no programa do Jô Soares, por ocasião do lançamento de meu livro. Que, aliás, foi muitíssimo bem recomendado pela Veja, Bravo, Folha de S. Paulo e Lola. O Estadão falou mal, a Época nem deu tchum, mas como sou uma escritora meio blasé, não ligo. Estabeleço diálogos interessantíssimos com ele e não estou nervosa. Devaneio é devaneio. Lá pelas tantas, aproveito uma deixa e conto ao Brasil um causo verídico envolvendo o gordo. Final dos anos sessenta, ele, já rechonchudo, aboletou-se no sofá da minha amiga, e este veio ao chão. Ele leva alguns segundos para se lembrar, abre uma gargalhada (a plateia e o sexteto também), seguida da franzida de sobrancelha que é sua marca registrada. Quer notícias do pai da minha amiga, eu conto, ele se entristece. Depois, pergunta se o conserto do sofá ficou caro. Humoristas.

Devaneio recorrente número 3. Faturo a Mega Sena da Virada e descubro en passant, porque ouço no jornal a repórter anunciando, inconformada, que o milionário de Campinas ainda não foi retirar seu prêmio. Gosto de apostar, mas me escapa a conferência. Maquino um plano para ir ao banco sem alarde, disfarço-me esplendidamente, de modo que nem meus filhos me reconhecem. Decido viajar até Palmas, no Tocantins, para receber a dinheirama, digamos, incógnita. Esse devaneio, em particular, costuma vir acompanhado de outro, o 3-a: sou sequestrada e passo vinte e dois dias no cativeiro antes que a polícia me liberte, a partir da denúncia de um vizinho. O devaneio 3-b consiste do encontro (secreto, evidentemente) com meu salvador, um vendedor de morangos de beira de estrada, para lhe dar um abraço. E algum dindim.

Devaneio recorrente número 4. Entro na cozinha para apanhar uma bolachinha e dou de cara com um senhor que não conheço, já falecido. Percebo isso porque seus passos não fazem barulho. Eu ajo naturalmente, porque sou uma pessoa sem preconceitos com ninguém, nem com os mortos, e pergunto se somos parentes. Ele não responde. Tento saber o que ele quer ali, fuçando na minha despensa, e nada. Sondo se é possível tocar-lhe o ombro, ou se ele é apenas um holograma do além, para testar-lhe a temperatura. Dizem que todo morto é frio, mas quem mora tão perto de Deus há de estar mais aquecido. Olho à volta para ver se alguém testemunhará comigo o episódio, mas somos somente eu e ele. Minhas chances de contar a experiência às pessoas (vivas), sem passar por alucinada, vão para as cucuias. É quando ele encontra o pacote de waffer, confere o sabor, põe dentro do casaco e se manda. É um devaneio flexível; às vezes, mudo personagem e local. E vejo minha mãe, assistindo, em meio aos balões coloridos, a família toda cantar parabéns para um dos netos. Penso naquilo do holograma, mas desta vez para ver se dá para lhe dar um abraço. Na hora que me despeço dela, fico sem graça de perguntar quando nos veremos de novo.

Uns colecionam selos. Outros, figurinhas. Eu sou colecionadora de devaneios. São bem mais divertidos. Minha coleção, ao contrário dos álbuns, não tem figurinha difícil, muito menos fim. Cabe em qualquer lugar e é portátil. Só uma coisa me aborrece: não ter com quem trocar os repetidos.

16 comentários em “Colecionadora de devaneios

  1. Querida Silmara,

    Ando numa correria danada, mas nunca resisto aos seus convites para ler um novo texto publicado. O problema é que vou lendo um, mais um e mais outro e logo estou perdida sobre qual deles gosto mais ou me identifico…
    Adorei todos o que li. Me emocionei com “Maria”, lindo, talvez até porque, embora quase nada religiosa, gosto mesmo de rezar a “Ave Maria”.
    Saudades, muitas…
    Beijos (estes espero que não sejam perdidos, pois quero que encontrem, gozando de muita saúde, sua destinatária)
    Flávia

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  2. Oi Sil! Amei seu texto! Sabe q tbm tenho devaneios com mega sena e ser a milésima a entrar numa loja? Além de outros, é claro, inconfessáveis…. Rssss…. Bjs!!!!

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  3. risos! eu tenho vários devaneios, e estando em situação gestacional avançada, o meu maior devaneio é responder com malcriação a toda sorte de pessoas desconhecidas que cismam em ficar botando a mão na minha pancinha e fazendo previsões do tipo, hum, é menino, hum, é menina. hum… e blá blá blá…

    Ai Sil… haja viu.

    beijocas e bons devaneios para voce.

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  4. Olá!Amei seu texto!Parabéns!Eu também fico em devaneios e crio situações como estas e achei lindo sua forma de contar!Leio sempre seu blog pois sou amante da leitura e seus textos me deixam enamorada da vida!Parabéns novamente!

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  5. Amei, mais uma vez!
    O da minha mãe no meio de balões queria ver mais vezes … mas ela insiste em não aparecer nos meus sonhos … acho que vou começar a usar os devaneios pra me encontrar com ela 🙂

    beijinhos,
    Rose

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  6. Adoro devaneios, tenho varios, uns ate incomunicaveis, mas me divirto tanto com eles rsrs, como sempre, quando eu crescer ou acabar de me formar em letras quero ser igual a vc.

    Beijos

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  7. Que lindo texto!
    Meu maior devaneio é dar uma de louca naqueles lugares mais conservadores possíveis: em meio a um culto, casamento, cerimônia da OAB etc…
    Tipo um Dia de Fúria.
    Sou capaz de passar um casamento inteirinho pensando nisso, sem ouvir uma só palavra do padre/pastor.
    Talvez não seja só um devaneio, mas sim assunto para a Terapia…

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  8. Podemos sim, trocar devaneios… num dos meus… sentadas em um confortável sofá, tomando um cappuccino, assistindo as pessoas e, sem pressa de sair…

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  9. Puxa… acredite, eu coleciono alguns tb. Neles a gente pode mexer e remexer. Botar a cor que quiser e a música de fundo que mais nos agradar. Resolver mal entendidos, dizer o que não se conseguiu no momento em que deveria. Matar a saudade de quem nos deixou e trazer pra mais perto quem tá longe. Faço isso antes de dormir… e quando não estou atrasada, tb um pouco antes de me levantar de manhã. Bj linda.

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