O (falso) poder da tranqueira, do cacareco e da bugiganga

Ilustração: Matti Mattila/Flickr.com

Desfiz-me de todos meus terninhos. Mentira, guardei um. Considerando a hipótese, cada vez mais remota, de eu vir a precisar ou ter vontade de usá-lo. O pretinho para lá de básico é o único remanescente da dúzia que jazia aposentada no armário, representantes de uma época em que o traje era meu uniforme diário. Tão sérios. Tão caretas. Eu não era (tão) séria. Eu não era (tão) careta. Vesti-los, porém, era meu dever. E não se falava mais nisso.

Os tais fazem parte de uma nova onda minha: botar reparo no que está arquivado em casa – no armário, gaveta, caixa, vão, fresta –, sem que alguma explicação consistente justifique sua permanência. Como os supracitados terninhos e o livro sobre como cuidar de um bebê, recentemente flagrado na estante (sendo que não há mais nenhum na família). Ou a nota fiscal do chuveiro elétrico que já pifou e foi substituído. Um ticket de embarque, tão antigo quanto a história da aviação. O aparelho de DVD quebrado, cujo conserto não compensa. Faturas de cartão de crédito de quando eu era solteira. Um exame de sangue de 2008 e antibióticos vencidos. Uma dezena de hashis que vieram junto aos últimos pedidos do fast-food, sem contar os sachês de mostarda e catchup envelhecendo na despensa. Uma Barbie em versão Saci-Pererê, quatro bolas furadas. A lista, longuíssima, é fruto não só de uma certa desorganização doméstica, mas da ancestral necessidade de registrar e comprovar tudo (que parimos, que compramos, que pagamos, que fomos, que voltamos, que temos, que somos), respaldada pela síndrome do acúmulo, cujo lema é “Um dia eu posso precisar”. Depois, reclamamos que a casa ficou pequena.

Quisera ganhar no Dia das Mães um aspirador especial, que sugasse não apenas o pó da velharia inútil, mas a própria velharia e suas teias invisíveis – sobretudo as que se instalam nas ideias. Uma vassoura mágica, para varrer do meu lar o apego, que é meio-primo do medo. Procura-se faxineira de alma, para dormir no emprego. Paga-se bem.

Dia desses, vi na TV uma norte-americana, casada e mãe de sete. A moça mantinha no guarda-roupa, ao lado das peças do dia-a-dia, seu uniforme de animadora de torcida. Ela ainda cabia nele, não se tratava da clássica questão de desejar a antiga forma. O que ela queria de volta, e não sabia, era o passado. Que, claro, ficara lá atrás. Seus gritos de guerra agora eram outros. Não mais tão animados.

E meus terninhos? Personagens de um passado bom que, em irresistível trocadilho, não me serve mais. Foram-se, portanto, todos. Foram tarde. Menos o pretinho. Se bem que. Ele que se cuide.

12 comentários em “O (falso) poder da tranqueira, do cacareco e da bugiganga

  1. pra fazer minha mudança, fechei os olhos e saí rasguando.. às vezes me transporto pra depois que morri, e nada daquilo que havia guardado com tanto fervor ou piedade foram comigo.. enfim, as tranqueiras & baboseiras que me fizerem sorrir quando eu esbarrar a vista.. servem! o resto, fuuuuiiiii
    bjs, Silmara

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  2. nao sei se to escrevendo no lugar cert, Si… tá meio confuso aqui.

    Mas olha, amei o post, esse momento tbm to vivendo agora, vamos mudar em breve e é mais que necessário ver o que vai pra casa nova. Aqui eu sofro, porque nao tem mt lugar pra ir o que nao precisamos mais na Alemanha, menina, aqui se livrar de lixo é um problemao!!

    Mas eu lembro de uma vez que fiz umas faxinonas dessas na minha vida, e sabe a sensacao de que sai um peso de cima de vc??? assim me senti… depois parece que tudo flui melhor em vc e na sua casa, sabe que até um concurso de poesia nessa época eu ganhei depois da tranqueirada ter sido queimada, colocada no lixo enfim…??
    Te prepara pra coisas boas 🙂

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  3. Declutter é a palavra de ordem que me persegue. Não é fácil, mas temos que praticar senão o caos se instala. Beijos

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  4. Adorei o texto, essa facilidade de escrita me deixa apaixonadissima com seu canto, e falando em tranqueiras, incrivel nossa capacidade para isso né, eu tinha guardado peças de roupas que usava antes de ficar gravida, olhava elas no guarda roupa e me torturava, ai um dia cansei disso, cansei de tentar voltar, de ser algo que não tinha como e mesmo se eu voltesse aos tão sonhados quilinhos a menos nem sei se usaria aquelas peças, cansei, doei tudo, junto foram sapatos e bolsas das quais nem me lembro pq comprei, pois nem os usava, ficou um vazio enorme, senti um alivio e uma alegria muito grandes.

    A não sei se te contei mas estou fazendo Letras, eu passei em Letras, ai meu Jezuiziiiiiiiiiiiiiiiii que delicinha.

    Beijos
    Noh Gomes

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  5. Zuzu Amiga, lindo texto!
    Até mesmo nós (vc sabem quem somos) estamos tentando abolir aos poucos essa peça tão significativa ? E dá-lhe echarpes, twin-sets, casacos e petit-pois.
    Também quero esse aspirador !
    Bjs com saudades da zuleica Sheyla.

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  6. Parece que a ordem do momento é “desfazer-se de tudo o que não cabe mais ainda existir”. Aqui tb tenho reparado em coisas que atolam o presente com um passado sem sentido (inclusive a nota fiscal de garantia de um chuveiro que já nem existe mais).
    Falou e disse, Sil querida.

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  7. Guardar… guardar… apego em objetos para nos lembrar de algo… nos esquecemos que as lembranças estão em nós e não neles… será medo de não poder confiar na nossa memória?

    Outro dia vi uma reportagem sobre pessoas que acumulam objetos, de uma forma tão doentia que acabam por perder o convívio dos amigos e parentes pois não tem nem como receber alguém em casa, tamanho caos que se instala no lugar…

    Outras pessoas, acumulam sentimentos nessa mesma proporção…

    Um beijinho Sil, e até mais.
    Eu já estava com saudades de dar pitaco por aqui…

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  8. É amiga!!! Quem de nós não guarda algo por pura vontade de talves voltar a uma época que se foi, não volta mais… Não tem jeito, a gente vive em busca do algo novo, do querer viver o futuro e vislumbrá-lo… e lá vamos nós esbarrarmos com o passado, ali, guardado sabe-se lá qto tempo, louco pra sair e ir pra um futura não tão escuro como ficam em nossos quarda-roupas, armários e tal… Porque será que a gente é tão complicada? Acho que preciso de uma faxina geral… no geral mesmo amiga!
    Bjs iluminados pra vc
    Patty

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  9. Querida zuzu, desapego ao terninho! Esta é uma fronteira interessante e revolucionária!
    Menos, diria um encontro do seu “eu” verdadeiro.
    Este encontro lhe trará grandes beneficios, vc não terá ulceras, não terá gastrites e com certeza será mais feliz!!!
    Encontra-se, fazer o que se gostar, usar o que combina com vc é um nó que poucos conseguem se desfazer! Parabéns pela nova amizade e pelo texto!!! Adorei!!! Bjs

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