Pelo caminho, parte 2

Ilustração: Silvia Falqueto/Flickr.com

Oito e meia. A ginástica – compulsória, automática, ausente de prazer – é, enfim, encerrada. O alongamento diz ‘Olá’ aos músculos recém-percebidos, a toalha seca o rosto. E o rumo agora é certo, previsível e familiar: caminho de casa.

Certo, quando a única coisa esperada é retornar ao lar.

Previsível, como aquilo que se sabe, sempre.

Familiar, porque eu sou aguardada. Não para um compromisso ou evento; apenas para quitar a preocupação. Numa família, todos se esperam em casa. Numa família, só se repousa, de fato, quando todos chegam em casa. Verdade cunhada pelo “Trem das onze” do Adoniran.

Pois não fiz nada disso. Não fui para casa. Dei-me o sabor de um brevíssimo jantar no meio do caminho. Sem companhia, sem comunicado, aviso prévio ou satisfação. Para que a única satisfação fosse íntima: saborear a inédita refeição. E avisar em casa não fazia parte do plano. Era a minha pequena contravenção. Meu pecado, nada original. Cometido com a anuência de outro, a gula.

Não fiz, no entanto, ninguém em casa perder o sono. No pequeno desvio de percurso não deixei mortos, nem feridos. Todos se salvaram. Logo, muito logo, eu estaria de volta. No trem das nove. Trinta minutos fora do ar garantiram o direito à solidão, tão rara em meus tempos de mãe. Mulher tem direito à solidão. Mãe, nem sempre. Certos mandamentos familiares têm a força do concreto armado. Convém, de vez em quando, implodi-los. Carinhosamente.

5 comentários em “Pelo caminho, parte 2

  1. Ahh Sil… você é uma fofa! Seus textos são tão gostosos. Às vezes chego no trabalho e quero logo “ler você” mas me obrigo a trabalhar primeiro para só “te ler” no final do dia. É que nem a melhor parte do doce que a gente deixa pro final, sabe?

    Você já respondeu um comentário meu por e-mail (há uns dois anos… meu coração estava destruído na época!!). E eu fiquei tão feliz!! Mas esse aqui não tem o que responder não.. rs. Eu só queria mesmo te fazer – mais um – elogio!

    O “Chega de Cinza” tá no mural do meu quarto. Seus textos têm uma linda capacidade de não esgotarem. Que bom!

    Grande abraço,

    Michelli

    Michelli

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  2. Silêncio… artigo raro no vocabulário de mães e mulheres. Sem pequenas contravenções, não sobreviveríamos!
    Belíssimo texto!
    Marisa

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  3. E ainda assim, não há sentimento nem sensação que se compare à da necessidade de que somos “vítimas”, não tanto a da solidão esporádica, mas a da exigência da pesença absoluta, de corpo e alma, sempre, no meio dos corações amados.

    As mães são modestas, afinal. E fazem de tudo, inclusive apascentam elefantes alheios e próprios com a maior naturalidade.

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  4. Sil! mais um post no olho do boi… “Mulher tem direito à solidão. Mãe, nem sempre.” Preciso tirar uma folha de seu caderno e me sequestrar um dia desses.
    Beijo gostoso procê.

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