Pelo caminho

Ilustração: David Chilstrom/Flickr.com

Sei muito bem onde eu estava com a cabeça ontem, quando quase perdi a saída na rodovia. Eu tentava lembrar de alguns trajetos que não faço mais. Os que foram minha rotina por anos a fio. Os feitos a pé, ônibus, metrô, carro, quando eu tinha cinco, dez, quinze, vinte, trinta anos. E foi assim, brincando nos caminhos do passado, que quase me esqueci da trilha do presente.

Registro fundamental: o percurso de casa, na rua Natal, meu marco zero particular, para a escola, na rua da Mooca, literalmente na esquina. Aqueles duzentos metros deviam ser uma lonjura, posto que nunca me deixavam ir só. Alguém sempre me acompanhava. Cresci e fui autorizada à independência. Ia e voltava sozinha. O caminho de breves minutos durou nove anos.

Nos finais de semana, de casa para a casa da bisavó, na Vila Diva. Esse, sim, longe. Cruzávamos os bairros a pé. Ainda não havia a avenida Salim Farah Maluf. Na casa da Vovó Carmela ( não a chamávamos de Bisa) havia chá-mate pelando de quente e com muito açúcar, servido nas xícaras de porcelana coloridas, tão finas que eu tinha medo de trincá-las com meus goles. E tinha sempre tios, tias e primos por perto. Adeptos daquele modelo gregário em que várias famílias moram no mesmo quarteirão, e vão abrindo caminhos e instalando seus portõezinhos para conectar quintais e casas. A visita era, portanto, quase sempre coletiva. Hoje eu me perderia naquele pedaço e não reconheceria a rua, nem a casa da minha bisavó. Nem ela, nem os parentes, moram mais lá. Os velhos portõezinhos fecharam-se para sempre.

Colegial. O mesmo ônibus, apanhado no mesmo ponto na rua da Mooca, com pequenas variações nas linhas, ao longo de três anos, até a Praça da Sé. Dali, metrô até a estação Tiradentes. Da estação ao Liceu de Artes e Ofícios, seiscentos metros a pé pela rua Jorge Miranda, eternamente decorada com cocô de cavalo, visto que o Regimento de Cavalaria da Polícia Militar fica ali. Quinze para as sete da manhã e minhas narinas padeciam com o aroma.

Faculdade em Higienópolis, FAAP. O primeiro estágio, no Museu do Ipiranga. O segundo, na Lello, pertinho de casa, ia e voltava a pé. Primeiro emprego com carteira assinada, no Diário Popular. Depois, Folha de S. Paulo. Credicard. Anos de trólebus, os varões sempre escapavam dos fios. Lá ia o trocador: pausava a aferição do dinheiro, pulava a catraca, descia do ônibus, encaixava os danados no lugar, subia no ônibus, pulava a catraca, retomava seu posto e a conferência. Eu tinha pena dele. Quando passei a navegar pela cidade sobre minhas próprias rodas, pude escolher os caminhos, variá-los e errá-los. Por vezes, parei atrás de um trólebus e acompanhei, não sem impaciência, a velha missão do trocador.

As ruas todas onde passei e repassei a vida, salvo algumas mudanças das mãos, permanecem em seus lugares, têm ainda o mesmo nome. Quando se faz o mesmo caminho todo dia, exerce-se sobre ele uma espécie de propriedade. “Meu caminho”. É para que a (necessária) mesmice cotidiana ateste o passo – e a posse – sobre a vida. Quando um trajeto é abandonado, deixa de ser próprio. Muda de dono. Como um objeto pessoal que foi doado. Separar-se de um caminho é exercício de desapego. E refazê-lo, seria de quê?

Meus trajetos, hoje, também correm o risco da deslembrança futura. Quanto a isso, parece não haver saída. Nem a que eu quase perdi ontem, na rodovia.

5 comentários em “Pelo caminho

  1. Ai Sil, sabe o que é triste nesta história? Quando os caminhos não mudam, mas os nomes sim… (exemplo : Aguas espraiadas que virou Roberto Marinho.. e tantas outras ruas por aí).

    beijocas

    Curtir

  2. Por isso tenho me sentido perdida nos caminhos atuais da minha vida… tenho estado mesmo nos de outrora… tão deliciosamente percorridos.

    Curtir

  3. Sil, quantas lembranças vc me trouxe… Me senti a autora do texto, pois era tudo como se fosse eu, inclusive o lance dos trólebus, que em Recife, onde os conheci, se chamvam apenas “ônibus elétrico” e os varões não escapavam, mas eles andavam tão ràpido q eu achava que iam sar dos trilhos e morria de medo.
    Obrigada por reacender minhas memórias!
    Beijo grande!

    Curtir

Quer comentar?