Flan de baunilha

Só tinha flan de baunilha em casa – aqueles pudins prontos, que vêm em potinhos plásticos com calda de caramelo – se alguém ficava doente, ou outra ocasião especial. Custavam uma fortuna quando eu era criança. Ou nem tanto, a gente que não podia comprar.

Ter meia dúzia deles na geladeira era o sacrifício dos meus pais para ver um filho mais alegrinho, menos injuriado por causa do sarampo, da catapora ou da febre que, glória!, livrava a gente de ir à escola. Era a recompensa para a doída injeção no bumbum, tomada em pé nos fundos da farmácia do Archimedes. Um prêmio para o remédio amargo, de seis em seis horas.

A degustação da iguaria exigia cerimônia e respeito, e tinha início já ao levantar da fina folha de alumínio que a cobria. A raridade era incrivelmente saborosa. Mais até que o tender de Natal. Eu torcia para que a febre não cedesse, só para ser autorizada a mais um flan. Com meu irmão mais velho o negócio ainda rendia figurinhas. Era adoecer e lá ia ele ganhar uns pacotinhos extras. Alguma coisa, enfim, precisava valer a pena passar o dia na cama, sem poder brincar lá fora. Pai e mãe sempre dão um jeito de por alegria na vida da cria.

Meu sonho gastronômico infantil era devorar vários flans de uma vez só e, de preferência, gozando de perfeita saúde. Sem me preocupar em deixar algum para os irmãos, nem se ia dar dor de barriga. Sonho nunca realizado, mesmo quando ele pôde ser financiado.

Três décadas depois, acertei as contas com o passado.

No supermercado, escolhendo o iogurte das crianças – minha cria, desta vez –, estacionei na gôndola repleta de pudins. Tantas marcas, sabores. Tão baratos. Chequei o relógio, verifiquei a previsão do tempo, consultei os oráculos e não tive dúvidas: agarrei oito. Isso mesmo, oito. Eles são vendidos aos pares, quatro pares era um bom número. Olhei para os lados, temendo ser pega em flagrante delito, mais ou menos como quando eu tocava a campainha das casas da rua e saía correndo. Fazer algo escondido, mesmo quando se sabe que não há o que esconder, torna a coisa irremediavelmente mais gostosa.

Chegando em casa, os flans sequer foram para a geladeira. Abocanhei um por um, na cozinha, em pé. Igual quando tomava as injeções na farmácia, tirando o fato do meu bumbum, agora, estar devidamente preservado. Papei tudo, a barriga nem doeu. Caberiam mais. Uma mulher completa, eis agora o que eu era. Depois me dei conta: não havia comprado a mais para as crianças. Omiti a traquinagem, claro. Eles nem estavam doentes.

Ao terminar o oitavo flan, a pergunta fatal: por que é que não fiz isso antes? Os tempos de vacas magras ficaram lá atrás. Não que as vacas sejam muito gordas hoje, mas dão leite suficiente para, digamos, muito pudim. Por que é que nunca tirei o atraso? Por que desisti de, como diziam os mais velhos, matar a lombriga?

Porque esqueci. E do mesmo jeito que me esqueci desse desejo pueril, esqueci de muitos outros, perfeitamente concebíveis desde há muito tempo. Está certo que, hoje, a ideia de ter uma boneca do meu tamanho não me atrai tanto. A questão, no entanto, nem é essa. São as antigas quimeras irrealizadas, que viraram a esquina do tempo e se perderam na multidão dos anos. É o prazer de zerar um capricho. Liquidar um devaneio. Ficar quite com a criança interior e concluir mais uma pendência no checklist desta vida, para não levar muitas para a próxima.

Há quem, de infante, sonhou com a coleção em vinil dos Beatles ou botas até acima dos joelhos. Desejou almoçar no lugar mais caro do bairro, passar num carrão em frente ao colégio na hora da entrada ou montar um autorama gigante no meio da sala. Ou então, aprender a tocar piano depois do diploma de médico, sair numa escola de samba, badalar o sino da catedral da Sé.

A alegria que dá abastecer coração e alma com coisinhas assim não tem preço. Falando em preço, é sempre bom lembrar que boa parte das utopias particulares são realizáveis e podem estar, literalmente, ao alcance das mãos. Na prateleira de um supermercado, por exemplo. Meus flans custaram dez reais. Convencer o pároco da catedral, garanto, sai por menos.

19 comentários em “Flan de baunilha

  1. Nem gosto tanto desses iogurtes/flans e coisas que vem em potinhos, mas que deu vontade de devorar ao menos um inteirinho depois disso, deu

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  2. Silmara:
    Literalmentre deliciosa sua crônica dos flans!
    Que bom resgatar a criança que vive em nós!
    Vc ainda com suas crias, lembrando de quando era
    a cria!
    Pena q agora a sua traquinagem pode ter-lhe causado
    umas calorias a mais. Mas nada que uma boa atividade
    física não repõe tudo no lugar! E tudo sem culpa.
    bjs
    Maurício

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  3. Sil, como me lembrei da infância… Em ksa a gente ganhava grapete (uma garrafinha a mais p o aniversariante). Era uma delícia… E as bonecas q a gente queria e não podia ter? A mãe desenhava a bonequinha no papelão, pintava e recortava. Depois desenhava um tanto de roupinha no papel p a gente trocar. Era ótimo. O que uma mãe não faz p a cria? E a perna de pau (que pau?) com latinhas de Nescau e barbante? Tudo de bom. Amei seu texto. Bjs!!!!

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  4. “São as antigas quimeras irrealizadas, que viraram a esquina do tempo e se perderam na multidão dos anos…”
    Alimentar a criança interior é das asas à alma. Vamos indo, indo, indo por esse tufão chamado viva e idade adulta. Nos perdemos em meio às contas, ao trabalho, ao cotidiano. Quisera sempre fizéssemos e cumpríssemos essas listas internas que também somos: comendo flans, tocando sinos ou soltando pipas no meio da rua (como eu amava isso).
    Seja como for, eu dava tudo pra te ver saindo do mercado com os flans… e depois, dava tudo pra te ver em pé, na cozinha, comendo um por um. Eu faria MUUUUUITAS fotos !!!! kkkkkkkkkkkkkkk
    Qdo eu for te visitar, faz isso?? Daí faço uma série fotográfica pra vc e de vc… e claro, dos flans…
    kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk
    Bjs na sua adorável criança.

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  5. Silmara, duas coisas… Primeiro, a gente não deveria esquecer da criança que existe dentro de nós, e às vezes me pergunto por que será que as experiências dessa fase nos marcam tanto?? Eu sou capaz de não me lembrar do primeiro beijo, mas lembro de algumas broncas feias que tomei do meu pai, daquelas por nada… Vai entender!

    A segunda, parabéns pelo aniversário do blog, eu desejaria a ele muitos anos, mas não, não posso: espero que ele não dure tanto assim, somente o tempo suficiente para vc anotar suas idéias para uma dúzia de livros!!

    bj grande… Ah antes que eu me esqueça, se vc souber onde comprar uma engrenagem planetaria cronica de nylon, me avisa. Tô muito precisada.

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  6. Mais uma vez fiquei emocionada..
    Lembrei dos meus 12 anos, quando o meu maior sonho de consumo era o Dani de coco com calda de ameixa, que eu vivia namorando na padaria, mas como eram tempos de vacas muuitas magras, só consegui realizar esse desejo pouquíssimas vezes. Hj o Dani não existe mais e meus olhos só alcançam o iogurte natural, q não aumenta meu colesterol, minha glicose, minha culpa, mas q tem um gosto de rotina… nem mesmo a Mil Folhas q ganhava da minha mãe toda vez q ficava doente ou a Nhã Benta da Kopenhagen q ela trazia toda vez q recebia o pagamento, (ai, como era bom!)e q continua ali dando mole nas prateleirasm conseguem me seduzir… Pq será? Assim q sair daqui do trabalho (de saco cheio como sempre) vou comer um doce e tentar achar dentro de mim o prazer pelas coisas simples e q hj estão ao meu alcance, mas q teimo em ignorar.
    Muito obrigada pelo cutucão e parabéns mais uma vez pelo excelente texto.
    bj

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  7. Eu gostava tanto de brincar de pique-pega quando criança, que eu tinha certeza que quando ficasse adulto (ou mais precisamente, quando tivesse dinheiro), construiria um imenso labirinto, cheio de armadilhas, passagens secretas, etc. para brincar com os meus amigos. Sua postagem me lembrou disso. E acho que ainda quero, vinte anos depois, o tal labirinto.

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  8. A D O R E I! Há menos de 1 mês, num passeio em Pedreira, me deparei com aquelas bonequinhas russas, sabe, e instantaneamente me lembrei que eu tinha uma dessas e passava horas seguidas brincando com aquilo e queria morrer quando a minha irmã resolvia fazer o mesmo, afinal, apesar de serem várias bonecas uma dentro da outra, era uma só. Enfim, comprei a boneca que tb me custou 10 reais e vim no carro já desmontando pra saber até onde ela podia ir. Depois montei de novo. E desmontei. E montei. Foi uma delícia, vou empresta-la pra Nina e com certeza vc terá umas horas de silêncio na casa…ou vai querer brincar também. Beijos e ótimo fim de semana.

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  9. Me deu uma vontade de vasculhar até o fundo do HD pra rememorar todos os desejos infantis e começar a realizá-los…
    Nunca gostei de flan, mas entendo bem o seu desejo, outro dia comi meia torta de morango com gelatina em cima ( aquelas que parecem um espelho de tão brilhantes) de uma confeitaria da cidade em que nasci, porque era a torta dos aniversários na escola. Na minha memória infantil, todos os aniversarios tinham aquela torta, mas perguntei para minha mãe e ela disse que devem ter sido só duas ou três vezes…Mas aniversário para mim até hoje tem gosto de torta de morango da Pralinè

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  10. Nossa, me deu saudade da minha infância quando comer danette era uma grande alegria. Lá em casa a grana também era contada pra esses supérfluos então danette era sempre ocasião especial!

    E quando leio este texto, entendo de repente porque vivo namorando as Barbies nas prateleiras das lojas de brinquedos…Eu que tenho um menino que só quer saber de dinossauros, cobras e lagartos! É que nunca tive uma Barbie quando criança, só a Susie. A Barbie era cara demais!

    Hoje em dia olho as crianças aqui à minha volta na Holanda e me assusta ver a facilidade como eles tem tudo…Sério, até perde a graça.

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  11. Oi Sil
    Meu irmão fez isso com o Yakult, o desejo dele quando criança era comprar seis e tomar de uma vez em uma caneca…depois de velho realizou o desejo.
    Ainda esta presente em mim as dificuldades da infância…toda vez que almoço em restaurante com meu namorado eu falo: Nós somos ricos né…rsrsrsrs

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  12. Sil, rs, me lembro desta tua história do flan… de um outro dia que falamos, sabe que lendo o texto lembrei de outra coisa.

    Quando crianças, meu irmão e eu brigávamos por tudo, e guloseimas era um prato cheio para a guerra. Lembro que eu lambia todos os biscoitos do pacote só para não ter que dividir com ele… o mais ‘trágico’ por assim dizer, foi o dia que minha mãe comprou alfajores brancos, um pacote com três e não eram muito baratos. Escondi no meu guarda-roupa para comer sozinha, mais tarde, o problema foi que me esqueci e um belo dia, arrumando as roupas de semi aborrescente, encontrei um pacotinho com algo que pareciam três kiwis, bem cabeludinhos… lá estavam eles, os alfajores… mofados, peludos, perfeitos gremlins…rs

    tsk tsk, a gente faz cada coisa pela gula não..rs

    beijocas (acho que vou fazer um post lá no meu bloguito com essa história)

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  13. Silmara, não consigo parar de rir! Será que você vai conseguir comer flan de novo? Acho que oito foram o bastante pra matar a lombriga! Obrigada por me dar boas risadas pela manhã.

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  14. Sil! (olha a intimidade)
    nutra sempre essa criança dentro de voce e nos deixe saber das traquinagens porque essas nos iluminam e nos fazem mais leve por dentro.
    Beijos gostosos lambuzados de flans e mousses.

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