Filosofia de chuveiro

Foto: Mel Toledo/Flickr.com

Sexta-feira é dia da empregada lavar meu banheiro. E ela muda tudo de lugar no porta-xampu. É desses de dois andares, compartilhado com o marido. As coisas dele ficam no térreo. No primeiro andar, as minhas, mantidas em previsível ordem. Xampus à frente, condicionadores atrás; óleo de banho na sequência; ao lado, esponja, sabonete e aparelho de barbear para o sovaco. Em dia de faxina, no entanto, fico perdida com a nova órbita dos meus satélites. O xampu no finzinho, deixado propositalmente de ponta-cabeça para melhor aproveitamento, está em pé de novo. O aparelho de barbear, apesar de cor-de-rosa, foi transportado ao território masculino. Percebo, aliás, que ali também houve certa embaralhada (não captada pelo patrão). Semana após semana, ela não repete o lugar de nada, num intrigante ineditismo. São sempre novas combinações. Criatividade, pressa ou distração?

Ao fazer isso, sem saber, ela altera o ritmo do meu banho. Invade a parte que me cabe nesse minifúndio feito de azulejos. Confunde meus neurônios, agora obrigados a novas e complexas sinapses. E deixa sua indelével pegada em território tão íntimo.

Depois de sua passagem pelo local eu me ponho, secretamente, a corrigir tudo. Sexta passada, porém, tomei a incomum decisão: deixei tudinho como ela definiu. Sabendo que o xampu do marido está no lugar do óleo perfumado, e consciente do risco dele usá-lo na cabeça.

Nesse pequeno e doméstico exercício, aparentemente sem importância, eu revejo o quanto a rotina, em seus detalhes, está sedimentada. E o quanto mexer nela pode alterar o percurso do dia. Para o bem e para o mal.

O cotidiano não é, mas pode ser um cruel replay de vidas presentes. Acordamos à mesma hora, levantamos sempre pelo nosso lado da cama, calçamos – ou não – os chinelos. Escovamos os dentes começando pelo mesmo lado da boca, bochechamos com água o mesmo número de vezes, secamos as mãos do mesmo modo. Espreguiçamo-nos igual ontem e olhamos pela mesma janela, que nos devolve a mesma paisagem. Sentamo-nos em nosso lugar à mesa e recriamos o café-da-manhã da manhã de ontem, variando entre pão ou torrada, café-com-leite ou suco de laranja. Escolhemos uma roupa e, raras exceções, optamos pelo já testado e aprovado. Dirigimos do mesmo jeito até o lugar de sempre e, no caminho, reparamos no que já foi percebido. Damos bom dia aos colegas de trabalho com o mesmo sorriso (salvo em dias de TPM), realizamos nosso ofício da mesma maneira, com direito a pequenas alterações no decorrer do período. Para quem fica em casa não é diferente. Depois, não sabemos por que é que nada de novo acontece na nossa vida. É uma repetição sem fim de gestos e hábitos, cristalizados, talvez, em nome da segurança e conforto de um suposto saber sobre como tudo será. Os dias da semana nem precisavam ter nomes diferentes.

A criatividade, pressa ou distração da empregada, quem diria, se torna uma grandiosa benfeitoria. A imperfeição da ordem no porta-xampu está somente em meu olhar. É em meu referencial que o caos mora. No primeiro ou segundo andar, tudo continuará ao meu alcance e com suas funções preservadas: o sabonete sempre será sabonete, e assim por diante. Se eu pudesse estender isso pela vida, meu mundo seria outro.

Mas quer saber? Não dou três dias para eu colocar tudo de volta no lugar.

12 comentários em “Filosofia de chuveiro

  1. Sil, adorei o texto. Acho q toda faxineira, secretária, diarista é igual, né? Não adianta arrumarmos q elas trocam tudo de lugar. Será q elas acham q pela experiência delas em arrumação elas é que estão certas? Desde q continuem nos ajudando na limpeza, as coisas fora do lugar a gente arruma, né? Bjs!!!

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  2. Silmara:
    Seu blog foi-me recomendado pela Dinah.
    Gostei muito da sua crônica.
    mas tenho certeza q sua faxineira não mexe na ordem das coisas só do banheiro. Deve “desarrumar” a casa toda! Uma vez tinha uma ajudante q no meu escritório (trabalho em casa), o lixo que fica debaixo da estante, sempre ia para o meio do quarto, assim como um enfeite! Não adiantava removê-lo para o seu lugar: na semana seguinte lá estava ele, como o centro das atenções!
    Talvez seja o modo como elas (nossas ajudantes) vejam o mundo!
    bjs e parabéns pelo blog. Se puder me visitar, terei o maior prazer!
    Maurício

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  3. Acho que para ser uma boa faxineira ela tem que seguir este ‘padrão’ de não deixar nada no lugar, do contrário ela gastaria suas horas memorizando o que deve ficar ali e aqui… a minha faz igual e pior, tem um sabonete facial em barra, (que paguei com dó, pq tenho pele oleosa e só ele faz milagre) que eu corto em tiras e deixo na saboneteira, dentro do box, separado do sabonete de banho… pois a danada da faxineira sempre coloca meu caro, rico, delicioso sabonete junto com o do banho e óbvio, marido e filho, vira e mexe tomam banho com sabonete para o rosto….rs..

    e ela é mais criativa, ela junta as coisas que ficam sob a pia e manda para dentro do box – exaguatório bucal já trocou de lugar com o óleo de amendoas e o sabonete intimo, ainda bem que ele tem cores gritantes ou marido ia bochechar coisa errada.

    beijos, Dani

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  4. Confesso que volta e meia perco alguns minutos me perguntando qual o mistério por trás das “reorganizações” semanais na minha casa, rs. E também tento entender o que é que as faxineiras têm contra os fios – o fio da antena da TV, principalmente. Fico sem TV todas as 3as e 6as…

    Acho que só arrumando a casa dos outros uma vez para entender os mistérios, rs!

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  5. A rotina nos agarra (ou nós nos agarramos a ela) e qq fio de cabelo a mais que aparece no lavabo já nos pinça dela, mesmo que por alguns segundos. Incomoda, mas é bom.
    Claro que amei o texto e a reflexão. Bj!!

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  6. Adorei o texto. Tb sou um pouco control freak, e me pego arrumando tudo o tempo todo… Como não podemos controlar o mundo, o tempo e a morte, controlamos a ordem dos xampus e o horário de escovar os dentes.
    Mas tem gente que não faz isso não, olha só: http://365nuncas.wordpress.com/
    Achei inspiradora essa idéia!

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  7. Adoro seus textos, Silmara! Você nos ajuda a olhar para as coisas do cotidiano de uma nova maneira, com sensibilidade e poesia.

    Li outro dia um texto que sugeria mudanças no cotidiano para manter a mente ativa e em forma. Dizia que sem eventos diferentes para marcar a passagem do tempo, os neurônios não tinham tanto exercício e acabavam se acomodando (e com o tempo, ficando preguiçosos). Assim como novas atividades e estímulos mentais, mudar a rotina também é uma forma de se manter jovem e ativo. Portanto, abençoadas empregadas bagunceiras!

    Grande beijo!

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  8. Acho que todo mundo (do sexo feminino, principalmente), tem um pouco de transtorno obsessivo compulsivo em relação as coisas rotineiras. Eu chego a ficar nervosa quando alguém interfere na minha “ordem” das coisas. As vezes me pego explicando que até na minha bagunça há ordem! No meu caso, o criador de caos é o marido…
    Também acho que as mudanças são benéficas e acredito que o aprendizado está em observar e se adaptar as elas e aceitar que o universo tende à entropia máxima. É muito gasto de energia tentar manter absolutamente sob controle. Segunda lei da termodinâmica!

    bjs

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  9. hahaha
    Será que as meninas que moravam comigo em Portugal faziam a mesma coisa quando era eu que arrumava o banheiro? (também, era tanto creme, xampú, sabonete, esfoliante, etc, etc, que era impossível eu decorar o lugar de cada um…)

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  10. Adorei, rs. Minhas frases preferidas:
    “Invade a parte que me cabe nesse minifúndio feito de azulejos.”
    “Sabendo que o xampu do marido está no lugar do óleo perfumado, e consciente do risco dele usá-lo na cabeça.”

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  11. Rá! Eu pensei que era só eu… o pior é que eu não tenho empregada, então… Eu bagunço e arrumo e assim caminha a humanidade. Às vezes a gente tem que parar um pouco, fechar os olhos e lembrar que amanhã toda a bagunça vai estar lá de novo, incólume e faceira.

    Então, estressar para que?? Seria tão melhor se a gente, ao invés de arrumar os xampús, fosse dar uma volta com o cachorro, ou desse um looongo beijo de namorado no marido (putz, quanto tempo faz que a gente não faz??) ou simplesmente dividisse uma negresco com o filhote.

    bjs

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