A bolsa da Dona Jacy

Ilustração: Andrea Joseph/Flickr.com

Em (quase) qualquer lar do planeta é assim: a gente procura uma lembrança e se depara com outra. Quem nunca foi atrás do álbum de casamento e encontrou uma fotografia do pré-primário? Ou tentou localizar o telefone da madrinha numa agenda antiga e deu de cara com o do ex-namorado? Somos todos colecionadores de saudades.

Dia desses, uma das minhas cunhadas buscava nos armários uma mala para usar no final de semana. Achou. E acabou fazendo uma viagem inteira dentro dela. Só que ao passado. Entre quinquilharias, como uma régua com o logotipo do Banco do Brasil, medalhas e um missal, as preciosidades: quatro bolsas da Dona Jacy que, em rima triste, não conheci. Dona Jacy, mãe da cunhada, é também mãe do meu marido, mulher do meu sogro, avó dos meus filhos. Minha sogra. Uma das bolsas é vermelha, está com o fecho quebrado. Outra é branca. A preta ainda guarda um band-aid e o delicado par de luvas de cetim negro, registrando o último dia que ela a usou. E mais uma, de madeira. Um perfeito bauzinho, não fosse a alça lhe denunciando a função. Todas dentro do objeto inicial da busca – a mala – , enterradas no velho quartinho do quintal, endereço certo para o que ninguém quer mais. Naquele instante, desenterrava-se o que não merecia estar sepultado. Ainda havia vida pulsando naquelas bolsas.

É raro uma mulher emprestar sua bolsa à outra. É objeto pessoal, igual escova de dente. Nunca se sabe se a outra vai cuidar bem dela, se vai colocá-la no assoalho do carro porque as compras ocuparam o banco inteiro, ou se vai esbarrá-la, acidentalmente, numa parede com tinta fresca. E se a bolsa vai e não volta no prazo combinado, véspera da festa onde se pretende usá-la? Melhor evitar a saia-justa, o fim da amizade, o holocausto. Bolsa não se compartilha, e ponto. Mas não dizem que toda regra tem sua exceção?

Há dezenove anos as pobrezinhas das bolsas de Dona Jacy não davam um passeio. Esta semana, porém, encerraram o jejum. Ganharam novas donas. Vão todas morar em outros armários de mulher. Estão (bem) emprestadas, conforme reza a exceção. Repartidas entre as cunhadas e eu, a nora. Fiquei com a de madeira. Para combinar com meu elemento terra. Marido disse que se lembra da mãe com ela. Na hora, juro que vi uma lágrima ali.

Devo prestar atenção quando for usá-la. Não é bolsa de se levar o universo. Apenas batom, espelho e RG, para provar que sou digna de portá-la. Nela, não cabe a saudade do meu sogro e seus cinco filhos. Mas cabe a certeza de que tudo vive e revive, o tempo todo.

O melhor de tudo é que não tenho que devolvê-la. Dona Jacy não a usa mais. E nas festas aonde ela vai agora ninguém precisa de bolsa. A única condição, que eu mesma inventei, é eu passá-la a outra mulher da família, no tempo certo, perpetuando a tradição que acaba de ser criada. A pequena bolsa de madeira será, pela ordem natural, da minha filha, sua neta caçula. Que saberá a hora de emprestá-la novamente. Um dia, nas voltas que o mundo dá, ela acabará voltando para as mãos da dona.

19 comentários em “A bolsa da Dona Jacy

  1. Eu já li várias vezes este texto, todas as vezes como se fossem a primeira…talvez por ter conhecido a tão famosa bolsa, que por sinal e linda e combinou muito com você Sil! 🙂

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  2. Texto maravilhoso. Assim como os outros.
    Esse me tocou mais, pois na semana passada fui revirar o armário da minha mãe que se foi. O seu texto ajudou a desentulhar as coisas e passar para outras pessoas, acho que assim como minha mãe faria.
    Obrigada pela ajuda e delicadeza das palavras.

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  3. Um dia ela voltará para as mãos da dona… E eu aqui pensando, o que será que a gente vai deixar que vai tocar tão fundo o coração de alguém a ponto de dar a volta no tempo???

    É o amor, Silmara, e a gente ainda precisa se convencer de que nada mais é preciso.

    bj grande

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  4. risos! Sei como são essas ‘cavuquices’. A vida inteira morei na mesma casa, só me mudei quando casei, e nesta mudança, minha mãe se animou e depois de mais de 30 anos morando no mesmo lugar, resolveu mudar também, para a praia…

    No esvaziamento dos armários, nos deparamos com um casaco, de pelos, tipo uma pelúcia, punhos pretos e gola preta de moletom, imitava uma jaquetinha biker… mas o que mais chamava a atençao era a cor. Azul royal.

    A troco de que minha mae ia levar um casaco de pelúcia manga longa e forrado de cor azul royal para a praia… hunf! ela se desfez do casaco, mas nao sem antes rirmos muito das várias vezes que tentei em vão sair com o dito cujo.

    Uma nostalgia compartilhada em vida. Em tempo: minha mãe, que nasceu em 53, usou o casaco em 78 com uma cigarrete branca bem colada e espadriles fechadas num tom azul bem escuro….

    rsrs vontade de ir lá na casa dela fuçar armário… rs

    beijocas

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  5. Sil, acho que esta bolsinha esteve “escondidinha” por estes anos para vir a nos premiar hoje com toda esta emoção expressa em suas palavras. A lágrima que você jurou ter visto nos olhos do meu irmão também escapou de meus olhos e com certeza de minhas irmãs também. Muito lindo!

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  6. Oi Silmara!

    Texto delicioso de ler e transbordante de sensibilidade.

    Verdade, bolsa de mulher é coisa complicada. Meio que guarda a alma da gente, né?

    Confesso que as minhas são sempre um caso à parte (talvez como as de muitas mulheres). Podem ser pequenas, médias ou grandes, nunca acho as coisas rapidinho dentro delas. Numa tentativa de organizar, em determinada ocasião, encontrei 24 batons! É. Foi nesse dia que percebi tantão que gosto de batom! kkkk!

    Beijoca!

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  7. Simplesmente lindo, Silmara! Me emocionei lendo cada palavra. Mas a ultima frase, pra mim, é a melhor de todas.

    Beijinhos…

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  8. Sua sensibilidade é ‘uma coisa do outro mundo’. Lindo!
    Já me vi viajando nas bolsas de festas da minha mãe. Beijos

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  9. Sil, só você para ter a sensibilidade de emocionar a todos com uma coisa tão simples mas tão profunda …. e saber que você não a conheceu me faz te adimirar ainda mais …. você tem o dom!!!! Sorte da sua sogra de você ter ficado com a bolsa dela …. tenho certeza de que emoção é o que não vai faltar quando você usá-la.

    Bjs

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  10. Sil,
    Quando você escrevia e eu estava sentada na poltrona de sua casa, atras do computador, relutei para ficar distraida com outras coisas. Hoje, na casa da Janoca, estou aqui a ler e a lembrar de como era bom ver a D. Jacy sair com suas bolsinhas e seu sorriso cativante. To segurando as lagrimas. Voce, mais uma vez, conseguiu expressar um monte de coisas que ficavam guardadas dentro da gente, com vontade de ser falada, mas que por algum motivo não eram ditas.
    Brigadao cunhada, brigadao mesmo por mais essa lembrança. beijos e mais beijos.

    Cris

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  11. Sil, lendo meu coração ficou saudoso, saudoso de vó sabe, as maiores lembranças que tenho de infancia são das bolsas lindas que ela usava, enormes para a epoca, trançadas com fios lindos, sempre combinava com os sapatos, ela quando saia era impecavel, mas a bolsa era a parte com que ela mais se preocupava, herança né, boa herança. Fico feliz por vc ter ganhado a sua, especialmente por ser madeira e por saber que vc tb é terra, feito eu.

    Vir aqui é tão bom, sempre.

    Beijossss

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  12. Lindo, Sil! Também não conheci a vó, mas sinto saudade do mesmo jeito. Fiquei emocionada, de verdade (‘:
    Beijão!

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  13. Sil, a bolsa de madeira é mesmo a sua cara. Não serviria para nenhuma de nós. Era para ser sua. Talvez eu tenha captado uma mensagem da mãe. Só não imaginava que vc se emocionaria e deixaria todos nós mais emocionados ainda. Valeu a pena, com certeza. E sei que a mãe está super feliz também. Ao pé da letra, a bolsa está em boas mãos. Bjs!!!!

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  14. Oi Silmara! Como sempre mais um tesouro vem do seu baú interior! Coisa linda esse seu texto. Prá semana estarei fazendo minha viagem ao passado, limpando e reciclando as coisitas de D. Terezinha, que virou estrela e deve estar numa das tais festas onde não precisam bolsas (será que ela conheceu D. Jacy?)
    Obrigada pelo arco íris de suas palavras. Beijo grande

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