Diariamente

Ilustração: Tadashi Kumai/Flickr.com

Todos os dias, enquanto escovo os dentes antes de dormir, presto atenção ao meu rosto. Não quero perder seu envelhecimento diário. Também não desejo, um belo dia, lá na frente, me assustar: “Meu Deus, estou velha”. Minha observação é pura precaução. Não posso fazê-la pela manhã, no entanto. Sou imprestável ao acordar. Como a tartaruga-marinha recém-nascida, que brota do seu ovo escondido na areia e dispara para o mar, eu broto dos lençóis e disparo para o chuveiro. É lá que termino de nascer. No banho, a água morna aciona minha agenda e eu repasso, tal uma vidente, o dia já anunciado.

Todos os dias, numa hora qualquer, presto atenção a alguma parte do meu corpo. Dedão, batata da perna, dorso da mão. Não quero perder de vista uma sarda nova, o anúncio de uma limitação física inédita, uma ruga que chega sem avisar. Meu corpo é uma hospedaria de sinais do tempo. Não gosto de todos, mas é preciso recebê-los e tratá-los bem. Sou feita deles.

Todos os dias, não sei ao certo a que horas, nem por quanto tempo, dedico-me a decorar os filhos. Estudo seus tamanhos, cheiros, formato dos olhos, quantos dentes aparecem quando sorriem. Talvez, por isso, ainda não tenha me espantado ao vê-los já grandes, nem compartilhado com outras mães as clássicas constatações, “Como cresceram!”, “Como o tempo passa rápido!”. Depois que tive filhos, o tempo não passou rápido coisa nenhuma. Seu compasso é o justo. Ser mãe demora. Uma vida inteira, por sinal. Às vezes, mais de uma.

Todos os dias, eu leio. Jornal, pensamento, olho, futuro. Nem sempre entendo o que dizem. Mantenho um dicionário na bolsa e outro no coração, para os casos de dúvida. Vez por outra, nenhum dos dois me acode. Então, em vez de ler, escrevo.

Todos os dias, é um tal de lembrar e esquecer as coisas, que nem sempre me lembro de lembrar de Deus. Sei que ele não liga para isso. Somos bons amigos, daqueles que não precisam se falar todo santo dia. E ele sabe que preciso mais dele que ele de mim. O que também não o preocupa. É mais velho, mais escolado. Não é dado a criancices. Isso ele empresta aos pequenos. Que vão lhe devolvendo as criancices, aos poucos, enquanto crescem. Mas eles nunca devolvem tudo. Sempre guardam um pouco delas, escondido entre uma coisa e outra. É assim comigo, é assim com todas as pessoas. Gente é incrivelmente parecida e repetitiva.

Quase todos os dias, quando dou comida para meus gatos, busco nas prateleiras mais inalcançáveis da memória as recordações dos outros animais que já viveram comigo. Três cães, dúzias de felinos, um hamster, alguns passarinhos. Enquanto fizer isso, vivos eles permanecerão. As lembranças são fundamentais para o registro da história – deles e minha. Despejo a ração nas vasilhas e vou historiando. Brinco que os bichos de agora são os de outrora, renascidos. É um jeito – inofensivo – de matar as saudades.

Quase sempre, no almoço ou jantar, imagino a jornada do alimento dentro de mim. Cada um dos nutrientes conhece plenamente a sua missão, sabe para onde ir e o que fazer para me manter viva e razoavelmente saudável. Ninguém lhes ensinou isso. Eles sabem por que sabem, a vida deles é tão somente ser. De vez em quando, queria ser um feijão.

Nem todos os dias sou feliz. Na maioria, alegre. Todos os dias, porém, sou valente. Isso basta.

13 comentários em “Diariamente

  1. A partir de hj vou agradecer a Deus por poder ler vc , e pedir que vc sempre esteja assim, valente. Sábia ,será uma consequencia dos seus dias e portanto mais proxima dEle.
    bjos

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  2. Oi,Silmara!
    Já tem muito tempo que não passo por aqui… O que é uma pena,pois os teus textos falam tão sinceramente à nossa alma! Mas o melhor de tudo é que li hoje como se eu tivesse do outro lado do espelho, vendo na vida dos outros,um pouco da minha. E concordo contigo em tantos detalhes descritos… Mas o tempo é variável contraditória, tanto pode ser nosso amigo, como vilão da nossa estória. Cabe à nós mesmos dar à ele um significado mais profundo…Aquele que vai além das nossas cicatrizes humanas. E é simplesmente diariamente que vamos construindo o nosso caminho, catando e pulando as pedras que aparecem na estrada… Que sempre sejamos valentes o bastante para sermos verdadeiros autores de nossa estória.
    Parabéns pelo lindo texto…
    Meu abraço carinhoso pra ti!
    Teresa

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  3. Oi Sil…
    lindo texto…cada dia tem a sua rotina especial, cheio de detalhes que fazem ser especiais os nossos dias.

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  4. Ai Sil, todos os dias eu decoro meu filho e mesmo assim me surpreendo… “como ele cresce…” acho que vou parar de dar fermento!

    😉

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  5. Oi Sil
    dizer que o texto é lindo, seria previsível e repetitivo, e nada acrescentaria, se acrescentar fosse preciso… e não é. Diariamente, eu me olho no espelho e encontro o olhar que ninguém vê. O olhar que que me olha e ao qual eu retribuo com um certo medo… é que esses olhos sabem mais de mim que qualquer outro. Me questionam atos e palavras que ninguém sabe que pensei ou fiz… é como se fossem os olhos de Deus, olhando através dos meus, e assim chegando no coração. Digo bom dia, com cara de paisagem tentando fazer passar despercebido o pavor que tenho desse olhar. Assim começa o dia, com um “bom dia” pro espelho, uma olhada nos cremes que tenho preguiça de usar, o chuveiro me chamando, o cheirinho de café que o marido prepara… e tudo o que venha neste dia… e mais um lindo texto seu, dependendo do dia da semana…
    um beijinho

    Josi

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  6. Você está sempre “me alimentando ” com suas crônicas.
    É com o olhar Silmara que passo a ver o mundo.
    Obrigada.

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  7. “Nem todos os dias sou feliz. Na maioria, alegre. Todos os dias, porém, sou valente. Isso basta.”

    Essa frase ta ecoando… reverberando… chacoalhando…
    Muito bom sentir isso…
    Bjs

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  8. Sil, vc me faz perceber a vida em cada letra que escreve. Nem sempre conseguimos isso. Geralmente nos enfiamos nos buraquinhos do caminho, esquecendo de olhar a imensidão da vida ao nosso redor e o quanto passamos correndo por todos os momentos, sem realmente vivê-los.
    Vc é um anjo de luz!

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  9. Olá querida!
    Valente e linda!
    Que reflexão maravilhosa!
    Acho que preciso prestar mais atenção aos detalhes do desenvolvimento de minha pequenina.
    A vida é tão corrida, mas é lindo vê-los em sua inocência e plenitude.
    bjjjjsssss

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  10. Silmara,

    É chover no molhado te cobrir de elogios bela belesa e poesia dos seus posts. Mas esse de hoje merece mais do que elogios. Merece aplausos, de pé.
    Com uma pontinha de inveja da sua serenidade…

    Um grande abraço,

    Janaina

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