Pão de forma

Ilustração: Robin Hutton/Flickr.com

Eu não como a primeira fatia do pão de forma. Nem a última. E, no caso de só as duas restarem no pacote, eu passo. Abro outro. Depois finjo que nem as tinha visto. Transvisto de distração fajuta minha escancarada rejeição pelas extremidades. Não quero o início, nem o fim. Só me interessa o durante.

A primeira e a última fatias, nesse tipo de pão, são diferentes. Imperfeitas e raquíticas, não têm a textura de uma fatia-padrão. Assim como inventaram o pão de forma sem casca – outra coisa que incomoda –, sou a favor de que o produto seja comercializado sem as fatias da ponta. Alguém já viu propaganda de sanduíche feito com elas? A estética, quando em nome do paladar, é implacável. Não poupa nem a ancestral arte da panificação.

Café da manhã e lanche da tarde, nos meus tempos de criança, eram feitos, entre outros quitutes, com a bengala comprada na padaria perto de casa. Não tinha isso de “meia dúzia de pãezinhos, por favor”. Trazida nos braços pelo meu avô e fatiada em rodelas, margarina dos dois lados. Às vezes, frigideira para dar cor e enlouquecer o olfato. Eu nunca queria os bicos, geralmente mais duros e com pouco miolo. Aguardava alguém se servir primeiro. Mas era, invariavelmente, submetida ao indelével gracejo rímico, “come o bico para ficar rico”. Não enriqueci, explicado está. A velha padaria não existe mais e a bengala há tempos foi rebatizada, agora se chama baguete. Está mais magra, comedida, discreta. As bengalas da minha infância eram gordas, exibiam-se no centro da mesa, alimentavam a família inteira. Pão coletivo.

Em casa, hoje, o único que livra as pobres do abandono é o marido, afeito às sobras de alimentos em geral, interessado no que ninguém mais quer. A maçã velha na geladeira, o restinho de água que um dia teve gás, o queijo que nem a vaca reconheceria. Está dedicado a passar seu legado adiante, doutrinando nossos filhos. O que eu faço nessa hora? Sento-me na ponta da mesa e fico de bico calado.

Ignorar os pontos cardeais do pão de forma não é como desprezar a ponta do pepino antes da salada, nem a cabeça e o rabo do peixe antes do ensopado. Não há semelhança. É um hábito inexplicável, vazio de sentido aparente, porém repleto de significados poderosos e desconhecidos. Bobagem decifrá-los.

Filosofia à parte, por mim as fatias extremas do pão são, sistematicamente, ignoradas. Até o dia em que o bolor toma conta e a minha dissimulação dá as caras. “Ah, que pena. Venceu”.

Vejam bem: agradeço pelo pão nosso de cada dia que nos é dado hoje. Desde que eu possa escolher a minha fatia.

12 comentários em “Pão de forma

  1. Ah pois eu sou viciada na casquinha1
    Fiko doida qdo o pao vem sem ela e se o marido come pode saber vou reclamar.
    E se colocar na torradeira fika dos deuses..
    bjos

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  2. Silmara,

    Eu adorava as pontas da bengala, do pão caseiro então, corro pra pegar as pontas … mas do pão de forma, eu também não como … elas sobram … até vencer … hehehehe

    bjs
    Rose

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  3. Ah sil… te digo que também tinha essa resistência, mas consegui vencê-la recentemente, quando comprei uma torradeira, confesso que as extremidades, sejam do início ou do fim são as que ficam mais apetitozas na torradeira, nem duras demais, nem moles, douradas na medida e quentinhas… prontas para receber a manteiguinha e derrete-la com maestria…

    fica a dica… rsrs

    beijocas

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  4. Sil, adoro as extremidades do pão de forma.
    Ao contrário de tantos, sempre corria e pegava a primeira fatia. Algo que saboreio até hoje, inclusive, pois adoro a casquinha de qualquer tipo de pão.

    Sobre inícios e fins, gosto dos inícios, apenas.
    O durante me traz mais certezas de que o fim, cedo ou tarde, chegará.

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  5. kkkkkkkkkkkkkkkkk Sil, na minha casa quem salva essas duas fatias é meu pai kkkk

    Eu não como de jeito nenhum, faço exatamente como você, faço de conta que nem vi kkk

    Muito legal!

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  6. Texto delicioso, Silmara.
    As pobres das extreminadaes do pão de forma não fazem o menor sucesso comigo. Aliás, devo confessar que deprezo também as pontas das roscas caseiras, bolo ingles…e afins… Voltando ao pão, tiro também todas as extremidades das fatias que ficam no meio. E jogo o resto no lixo, sem dó. De vez em quando recordo da voz da dona Zizi: “isso é pecado filha. Não jogue comida fora”…

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  7. Oi Silmara! pois é… eu adoro as pontas! eu adoro o bico!eu adoro a casca! Minhas crianças adoram o miolo assim, temos um belo casamento nesse nosso lar. O engraçado é que você disse: come o bico prá ficar rico. Não sou rica. Well… sou rica de saúde, amor e humor. Há tempos atrás, uma criança disse pra mim: – “Seu cabelo é anelado! A mamãe disse que se a gente come bico do pão, o cabelo anela. Eu não como o bico.” Pois é… meu cabelo é anelado. (PS: Gosto da viagem integral.)

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  8. É.. o começo e o fim têm suas semelhanças que destoam do durante. Nem parecem o mesmo pão.
    E com o bolor, o destino é o lixo.
    AMEI, como sempre!!!

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