De peito aberto

 

Ilustração: Marc Palm/Flickr.com

Ontem foi dia de mamografia. Exame de rotina, Doutora Clara diz que, com meu histórico, não se pode bobear. Obedeço. Além do mais, minha mãe dizia que mulher precisa se cuidar. Plantou essa semente em mim, trato de cultivá-la. Duas vezes por ano, sou virada pelo avesso, comprimida, vasculhada. Fuçam tudo lá dentro, medem, comparam. Posso não conhecer na íntegra o meu ‘eu interior’, mas os médicos, sim. Ave, inventor do Raio-X. Antes de sair de casa, não rezei. Se, por acaso, houver algo nos meus peitos, já está lá, mesmo. Depois a gente vê. Essa é uma prece que deve ser diária. Mais de agradecimento que de pedido, bom lembrar.

Minha mãe teve um nódulo no seio, e soube dele o tempo todo. Não contou para ninguém e não fez exame algum, numa espécie de ‘faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço’. Nem precisou. Quando procurou o Doutor Fuad, era tarde. (E eu fiz minha mamografia ontem à tarde. ‘Tarde’ é mesmo uma palavra cheia de nuances.) Aquele nódulo deu um nó nas nossas cabeças. Pouco tempo depois, apareceu um na minha garganta. Aprendi a conviver com ele. Só dói de vez em quando, quando engulo uma saudade meio grande.

Na sala de espera da clínica as grávidas se abanam, enquanto tentam dar conta dos cinco copos d’água que alguns exames exigem. Um ou outro marido acompanha, entretido com os jornais que ficam sobre a mesinha. Eu, que já encerrei a produção de filhos, prefiro as revistas, para me atualizar sobre quem casou e quem descasou. Assim a cabeça não inventa coisas. Quando me chamam, já sei. Devo me despir naquela salinha, avental aberto na frente, só um minuto, a médica já vem. Eu poderia trabalhar ali, conheço o script inteiro. Na hora do exame, procuro não fazer nenhuma gracinha típica da situação. A enfermeira conhece todas de cor e salteado. Qualquer tentativa de animar o ambiente será um martírio para ela, cuja rotina consiste em encaixar no aparelho de dois metros e meio de altura e ares de big brother as mamas da mulherada – cada uma com dimensões e sensibilidades distintas –, pedir para que tenham paciência, só mais um pouquinho, pronto. São cerca de trinta exames por dia, a enfermeira contou. Quantos daqueles resultados vão dar nó nas cabeças das suas donas?

Depois de operada, minha mãe inventou um jeito de disfarçar a ausência compulsória de uma das mamas. Um sutiã com bojo recheado de sementes, não me lembro de quê. Calibrava a quantidade em frente ao espelho, o peso e o formato ficavam parecidos com os de um peito de verdade. Bem mais em conta que os sutiãs de silicone industrializados. Hoje sei que ela carregava em si mais que as sementes estéreis do sutiã, fadadas a nunca brotar. Forte como uma árvore, minha mãe tombaria anos depois, vencida mais pela exaustão que pelo câncer. Colhi as sementes que sobraram e as guardei. Por isso, visito sempre a clínica.

Costumo receber boas notícias nesses exames. Depois de amanhã, Doutora Clara há de ficar feliz. Minha mãe, de certa forma, também. E eu, de uma vez por todas, saberei: suas sementes vingaram, sim.

12 comentários em “De peito aberto

  1. Eu não sei quando foi que comecei a ler seu blog… só sei que em alguns textos eu “deveria” ter comentado, mas meu comentário não está aqui.
    Neste, em especial. O câncer é a doença que mais tem levado homens e mulheres da minha família. Acho que somente um não morreu com esse fatídico diagnóstico. Até eu já tive o meu… minha mãe teve o dele, e meu pai continua tendo os dele, na pele, a cada ano de “revisões de rotina”.
    Ainda estamos aqui, firmes e fortes, sem nenhuma ideia de até quando. Mas estamos.
    Beijo, querida!

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  2. Que lindo texto, mais uma vez. Pessoas como você são reais escritoras, nasceram com esse dom, eu diria. Parece que o texto sai completinho, de uma vez só, da sua cabeça. E tudo faz tanto sentido! Parabéns!

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  3. Quando terminei de ler senti um misto ou mixto, de muita coisa, não sei explicar, me deu saudade, me deu vergonha por me descuidar, me deu vontade de abraçar suas palavras, pois não conheço outras que sejam tão doces e tão avassaladoras.

    Obrigada por voltar
    Beijos

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  4. Esse marcou de um jeito que não sei expressar… É como se fosse mais do que natural sentir compaixão por sua mãe, mas, ao mesmo tempo, inadequado, haja vista a fortaleza que ela foi.

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  5. Oi Sil, me emocionei, mais uma vez, com suas palavras.
    A força dessas sementes guardadas junto ao coração de sua mãe, tem hoje um sentido muinto mais amplo… brotou em forma de flores e frutos, semeados por você.
    Há um ano, guardo a requisição do meu médico para a mamografia… guardo, não por medo, mas por uma inércia que habita o corpo e o coração de mãe. É errado, eu sei, mas as vezes colocamos muitas coisas na vida como prioridade e sempre a frente estão os filhos e o marido. Não imaginamos nosso mundo sem eles um segundo que seja… e esse sentimento que não se quer revelar, acaba por superar qualquer exigência que nossa conciência venha a fazer… parece, que mãe não adoece, nunca esquecemos o dentista dos filhos, mas mãe, mãe não tem dentes… ou dentes de mães são ultrasupermegauber resistentes, estão sempre lá nos seus lugares… peitos de mãe também.
    Hoje pensei que não é só a minha vida sem eles que não consigo imaginar, mas também, e isso me amedronta muito, é a vida deles sem mim… quem iria lembrar das dos horários do dentista?? e ver seus sorrisos lindos, seus olhos brilhando, as carinha felizes, ou uma lágrima mais sentida??
    Vou marcar minha consulta, assim que o médico voltar das férias, pedir outra requisição para a mamografia…
    E vou ao dentista também …
    um abraço beeem apertado.
    beijinho
    Josi

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  6. Sil,

    Falar que é lindo ia ser repetitivo.
    Mas, mais uma vez suas palavras me tocaram fundo.
    Perdi minha mãe no ano passado, não faz um ano … não foi câncer, foi a diabetes que se instalou por quase 30 anos …. mas não foi nada disso, foi porque ela tinha chegado ao final da missão dela.

    Mas a saudade é enorme, ainda dói muito.
    E ler vc falando da sua mãe, tocou meu coração.

    Obrigada … e continue sempre escrevendo!
    vc é demais!

    Bjs
    Rose

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