Os finados e o amor

Ilustração: Ciro Esposito/Flickr.com

Foi no dia de Finados que meus pais se conheceram. Ele gosta de começar a história assim: “No dia dos mortos, dois vivos se encontraram”. Ela morreu no dia dos Namorados. Ainda não compreendi direito a relação que existe entre o amor e a morte. Só sei que no calendário um vem antes do outro.

Nunca visitei o lugar onde as cinzas de minha mãe foram lançadas. Combinamos: ela é quem me visita. Em sonho, roupa, fotografia, receita de panqueca. De tempos em tempos, tomamos um chá da tarde juntas. Mas falta algo nesses encontros. A xícara dela está sempre vazia.

Quando meu irmão mais velho entrou na faculdade, ela descobriu que estava doente. Escondeu a doença dos três filhos. Ao fazer isso, escolheu o caminho mais longo para salvar sua vida e, ao mesmo tempo, o mais curto para o fim dela. Só nos contou e procurou o médico cinco anos mais tarde, depois da festa de formatura. Teve tantos medos antes disso. De ser obrigada a parar de trabalhar, de o meu irmão não poder continuar os estudos, num dominó de receios sem sentido (não para ela). Passados cinco anos daquela festa, a família se reuniu novamente. Desta vez, sem nada para comemorar.

Até hoje meu pai faz poesias para minha mãe. Na sua academia particular de letras, ela é a sua imortal. Sempre que ele vê os netos, lamenta ela não ter conhecido nenhum. Um pesar logo substituído pelas novidades do dia, as eleições, o calor, o livro que ele está lendo. É bom assim. Distração é o melhor remédio para a saudade.

Ontem encontrei o gorro dela, de lã cor de vinho, guardado no meu armário. Ainda tem a borboletinha verde costurada nele, ideia dela para aproveitar o enfeite que caíra de um grampo de cabelo. Na verdade, o gorro era meu e acabou ficando para ela, que o usava para se aquecer nos dias gelados, já sem cabelos por causa da quimioterapia. Agora ela não precisa mais dele, eu sim. Como é que se põe gorro no coração? Às vezes, o meu sente tanto frio.

Aqui no quintal de casa as sementes de ipê brotaram, a amoreira da rua de cima está carregada. Meu filho aprendeu a escrever, vive me mandando bilhetinhos escrito “eutiadoro”, assim, com ‘i’ e tudo junto. O machucado do meu dedo (quem manda brincar com tesoura?) já nem dói mais. Acertei fazer moqueca e a filha da minha amiga nasceu. No dia dos mortos, é bom falar de amor.

26 comentários em “Os finados e o amor

  1. Os Finados e o Amor

    ‘Foi no dia de Finados que meus pais se conheceram. Ele gosta de começar a história assim: “No dia dos mortos, dois vivos se encontraram”. Ela morreu no dia dos Namorados. Ainda não compreendi direito a relação que existe entre o amor e a morte. Só sei que no calendário um vem antes do outro.’
    [Blog da Silmara Franco]

    A sua parcial compreensão sobre que relação tem os Finados com o Amor me faz acreditaar que Vc compreende uma parte dos pensamentos sobre esse tema! Como eu não sei o conteúdo de cada uma dessas partes, eu peço desculpas se o que vou lhe dizer abalar ou contrariar justamente a parte que Vc compreende !
    O Amor! O Amor é a palavra mais antiga do Universo. O Amor é a maior das Energias, com a qual Deus criou tudo o que existe, pois Ele já era tudo o que existia ! E dentre todas as Suas criações, aquela na qual Ele mais depositou todo o Seu Amor foi o Homem, que traz dentro de si um pequenino pedaço da Consciência Divina, a sua Alma!
    Algumas citações:
    “Eu precisaria de conhecer toda a cultura ampla e profunda para poder distinguir, das milhares de outras palavras, a palavra que trago na mente. … Eu precisaria da lingua dos anjos para traduzir a doçura da frase que, nesta hora, enche o meu coração. Essa palavra que eu ainda não disse, e que com outra veste se chama vida, é a mais antiga do mundo (grifo meu). … Esta palavra, que me custa pronunciar, porque não tenho vestimenta com que a apresente, é o Amor!” [Mensagens Evangélicas, Rev. Jorge Bertolaso Stella].
    “Todas as ações humanas são motivadas por Amor ou por Medo.
    O Amor é energia que expande, que move, que revela, que leva-nos a ficar e partilhar e que cura; nos permite ficar nús, dá tudo aos outros, mostra afeição, liberta, acalma, regenera.” [Conversando com Deus, Neale Donald Walsch]
    O Amor tem também outras vestimentas que nos encantam e nos enlevam: Mãe, Pai, Mulher, Doçura, Ternura, Carinho, Amizade…
    Todas essas considerações nos levam a ligar a maravilhosa palavra Amor com a palavra Vida !
    A morte! Palavra de sentido triste e que designa o fim da vida orgânica, seja animal ou vegetal. Empregada num sentido mais amplo, a morte tem sido usada para representar o fim de um processo, de um ideal, de um movimento social, etc.
    Mas, e no caso do Homem ? A única certeza que temos é de que nos Finados pranteamos a morte da uma vida orgânica. A grande indagação é que essa Vida orgânica não se apresentou neste mundo apenas como um conjunto de órgãos que desempenharam algumas ou muitas funções ! Quando a sua presença chegou ao fim, daquele que abraçávamos, daquele que beijávamos, daquele que, juntamente com o calor da sua proximidade, também nos transmitia Amor na extensão da palavra, daquele com quem trocávamos idéias e sentimentos que extrapolam o orgânico, o término dessa complexa relação tende a nos levar a reagir como se fosse o fim de toda a maravilha que foi aquela Pessoa ! A dor é tanta, que se torna difícil pensarmos na manifestação não orgânica desse ente, sua parte muito mais profunda e significativa, a sua Alma!
    Neste sentido, há teólogos, teósofos, pensadores, metafísicos e outros que acham que a morte não existe ! Eu me incluo entre eles, como um humilde discípulo. E nesta linha de pensamento, para mim a morte é apenas antônima de vida orgânica.
    E assim sendo, qual seria então a palavra antônima que representa a ausência dessa Alma tão querida? Parodiando o Rev. Stella, acima transcrito, eu precisaria de conhecer toda a Física Quântica, para melhor poder entender como a Alma se distingue da vida orgânica.
    No princípio Deus era tudo que existia, e para ser verdade, era tudo que não existia. Ele era Energia. Ele era Amor, que no princípio se auto-amava com um Amor imenso, e por esse Amor criou todas as coisas.
    Como pensar que um Deus tão grandioso, no ápice da sua Criação, ao criar o Homem, ao dividir com este uma partícula da Sua Consciência, que chamamos de Alma, iria fazê-lo sujeita a um término de Morte?
    Lembrando Walsh, acima transcrito, somente o medo nos leva a colocar em Deus comportamentos negativos.
    Deus é Amor ! [I João 4:16]. Deus é Vida. Deus, o Amor e a Vida são eternos. Nós somos eternos! A palavra antônima da presença de uma Alma não existe !
    Os Finados comemoram não apenas o término de vidas orgânicas, mas comemoram também a Vida daqueles que hoje estão vivendo na Dimensão Divina. Lá só se vive o Amor.
    A relação entre os Finados e o Amor se confunde com a relação entre o Homem e Deus, entre o Homem e o Amor.

    ‘Foi no dia de Finados que meus pais se conheceram. Poderia começar a história assim: “No dia do Amor Eterno, duas Almas se encontraram”.’

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  2. Não vou mais te elogiar! Teus poemas e cronicas são cada um mais lindo, maravilhosamente escrito, melodiosamente acompanhado pela escolha das palavras!
    Continuo te devendo um comentário sobre o primeiro parágrafo…
    bjs,

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  3. Acho tão engraçado quando vc me emudece. Simples e complexo assim.
    Amo ver sua crônica carregada de poesia, amor, saudade, dor…
    Há vida, sabe? MUITA VIDA mesmo num dia morto, ou melhor, para os mortos tão vivos em nós!!!

    Uau. Você me deixou assim… Sentadai, com uma xícara de café e olhando os hibiscos aqui na janela da cozinha da Elan…
    Adoro seu modo de absorver a vida.

    Um abraço vivo. Muito vivo.
    Si

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  4. Meu coração sente frio mas tenho a bênção de ser aquecida por pessoas especiais como vc, que me acaricia com palavras especiais como seu texto. Obrigada, linda. Luz pra vc sempre! Bj!

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  5. Marejados ficaram os olhos….
    E quente o coração, com tanta sensibilidade.
    Estou muito feliz por te le.
    bjs
    sIL

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  6. Doçura, nada mais!

    Estou no mexico por esses dias e por aqui acabaram de celebrar o dia dos mortos e tipicamente o celebram preparando tudo que o morto gostava em vida, pois neste dia acreditam que ele venha fazer uma visita, e gostaria de ser bem recebido… tudo é muito colorido, em festa, e enfatizam que a morte faz parte da vida e que na realidade ela nada mais é que uma fase…

    lindo texto, linda saudade, beijos Sil…

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  7. Ah, Sil, encheram-se de lágrimas meus olhos…sim, nosso coração às vezes sente tanto frio….Mas, nos apeguemos ao que nasce, como as mudas do ipê (que coincidência, o meu também brotou!), ao que multiplica, como as frutas da amoreira, ao que evolui, como seu filho… porque tudo é um ciclo…não termina nunca. A saudade também não deixa a lembrança terminar…apenas renova a falta dentro da gente. Bjs querida.

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  8. Eu nunca sei o que fazer nesse dia. Meu pai detestava o dia de Finados.
    Ele morreu em novembro; minha mãe também. Acho que eles estão juntos em algum lugar, pois nunca se separaram em vida.
    Queria muito acreditar nisso – mesmo.
    Obrigada pela sua leitura sempre. Me faz um bem…

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  9. Silmara, que texto lindo e emocionante!

    Perder quem amamos é doído demais. Não faço idéia do tamanho da dor ao se perder um dos pais, ou um grande amor. Mas sei que não lido bem com a morte!

    Seu pai encontrou uma boa maneira de imortalizar sua mãe. Palavras são eternas. E acredito sim em reencontros. Não apenas agora. Mas do lado de lá! E me faz bem pensar que um dia, todos estaremos juntos novamente…

    Um beijo!

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  10. Não, Silmara. A xícara nunca estará vazia, por que transborda de amor. O mesmo que você tem pelos seus filhos, e essa linha de amor atravessa as gerações, onde todos ficam bem amarradinhos, só esperando o dia do grande nó, que é quando uma ponta se junta na outra, e os que vieram primeiro conhecem os que ficaram por último, e então é um abraço só!

    Nada de tristeza. Chegar e partir são só dois lados da mesma viagem.

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  11. Meus olhos, fracos olhos, se encheram facilmente, foi natural.

    Coração sente tanta coisa, frio, calor, invasão de borboletas, e algumas vezes pouco podemos fazer, como hoje, hoje é somente esperar.

    Mil beijos.

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  12. sem palavras…
    engasgue sabe?!!
    tao lindo o que escreveu.

    ontem falei com minha mae ao telefone, ela vai ler numa missa, que vai ser celebrada hj no cemitério, onde tá minha amada vó, que se foi mt nova, há mais de 27 anos… e ainda faz muito frio no meu coracao tbm si…nao tem falta maior que essa dentro de mim.

    obrigada pelo texto lindo, sentido.

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  13. Falar deles, que se fram, também é falar de amor… de um amor que não acabe mais, de uma amor que mais vivo, pois não precisa mais do tato, da fala, do cheiro, e que vive na lembrança do tato, da voz, dos cheiros e sabores de uma vida toda.

    beijinho Sil

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  14. É verdade, num dia aparentemente triste, o melhor a fazer é pensar em coisas boas, especialmente nas coisas boas que esse dia triste nos lembra.

    Linda a história de seus pais…

    Beijo, querida!

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