Sobre baleias e vulcões

Ilustração: Elizabeth/Flickr.com

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A garotinha das tranças tortas entregou o giz de cera, uma folha de papel, e pediu:

– Desenha uma baleia?

Danou-se. Quando ela era pequena, tudo que tentava desenhar ficava parecido com vulcão. “Por que um vulcão, Helena?”, a professora perguntou. “Não é vulcão…”, e desabou no choro que não terminaria antes do recreio. Desde aquela época resolvera: não desenharia mais e pronto. Passou a infância distante dos crayons. Era inimiga dos pincéis, avessa às aulas de educação artística. Adolescente, descobriu as ilustrações digitais. Foi sua alforria. Agora, a menina lhe propunha um retorno ao inferno.

– Vou tentar – disse, ajeitando-se no banco de concreto da pequena alameda. Esboçou uma montanha e acrescentou nela um rabo de peixe. Cruzou os braços, condenando o próprio trabalho:

– Eu não sei desenhar baleia.

A pequena quis tranquilizá-la:

– Não faz mal – e segredou-lhe no ouvido, baixinho: – A baleia também não sabe desenhar gente.

Retomou o giz. Riscou a metade inferior da ‘montanha’ com um longo e ondulado traço, representando o mar. Fez-lhe um olho triste. A garota examinou. Séria, inquiriu:

– Cadê o esguicho?

– Esguicho?

– Toda baleia solta esguicho pela cabeça. Nunca viu, não?

Desenhou, então, uma espécie de chafariz sobre a baleia disforme. Igual ao do jardim que ficava na entrada do asilo. Há um mês ela passava as manhãs ali, visitando os velhos. Mas sentia-se incomodada perto deles, alguns cheiravam a manteiga. Era com a menina que conversava a maior parte do tempo. Filha da cozinheira que, não tendo com quem ficar, ia junto.

Ela riu:

– Isso não é esguicho!

“Danou-se de vez”, pensou. O vulcão. Mas a menina soltou:

– Parece mais uma flor!

Estava sempre com duas tranças mal-feitas, produzidas às pressas pela mãe, ainda na madrugada. Uma começava acima da orelha. A outra, abaixo. Uma dúzia de fios eram banidos do abraço cor-de-rosa do elástico, aqui e lá. Diariamente interrompida em seus sonhos, tratava de terminá-los no caminho, embalada pelo sacolejo dos três ônibus.

“Flor é melhor que vulcão”, ponderou. Corrigiu o esguicho. Desenho aprovado, enfim. Os velhos dali nunca lhe pediam para fazer desenhos. Alguém os havia ensinado que era melhor serem quietinhos. Como vulcões extintos.

Meio-dia. Hora de partir. Desceu a alameda, cruzou os portões. Fez um último aceno à pequena amiga. Na esquina de casa, buscou na bolsa o controle remoto da garagem. Encontrou a baleia, dobrada em quatro. Sorriu. A semana estava apenas começando.

6 comentários em “Sobre baleias e vulcões

  1. Querida querida sou eu de novo :=)
    recebi teu email, só fiquei em dúvida se deveria responder lá ou aqui, ando meio tantan com net, depois de mt tempo (enjoei sabe?) to meio lentinha…
    só queria agradecer pela gentileza, como sempre, doce, que vem de ti.

    Um bj grande, tbm na minha xará :=)

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  2. Oi Si,
    que lindo isso!!
    Aliás, nao só isso, to já há um tempinho lendo os posts passados, tudo tao bonito, como sempre. Amei tudo mas o texto que vc fala de fazer gente, ou seja, filhos, putz, lindo demais, mexeu, claro comigo, que virei mae de novo (bobagem ne?? nunca se deixa de ser mae:=) mas enfim, tive outro pequeno, como vc diz, fiz gente de novo, e sim, tbm pra mim seria esse meu maior orgulho ao falar com papai do céu…

    Bjs Si, com carinho

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  3. E como o carneiro que um dia o outro moço desenhou dentro da caixa, assim pode ser considerada a menina das tranças com sua baleia com ‘esguicho de flor’…

    as crianças são mesmo decididas e diretas, e até hoje nao entendo porque é que deixamos de ser assim…

    beijocas Sil

    Dani

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  4. Oi Sil
    Lindo o texto, me fez pensar nas ações moldadas, nos sentimentos enlatados que nos obrigam a sentir ou a interpretar… algumas pessoas olham e jungam, ou pré julgam e para elas as ações são sempre previsíveis, não conseguem enxergar um tom diferente, uma nova visão… é difícil alguém que veja a flor expontaneamente onde muitos só vêem o vulcão…
    um beijinho
    Jo

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