Tristeza de anjo

Ilustração: Talas/Flickr.com

 

Ele andava tristonho havia dias. Notei numa manhã em que não quis muita conversa. Apareceu na cozinha, como de costume, encarapitado na geladeira. Nem Sucrilhos quis. Apanhei sua tigela preferida – a do carrinho azul – e ele resmungou, “Estou sem fome”. Coloquei-a de volta no armário. “Um café, então?”. Nem. Ficou lá. Os olhos tristes a me filmar, enquanto eu descongelava o peixe. Brincou com os ímãs da geladeira, trocou uns de lugar, pôs o do disque-farmácia de ponta-cabeça. Disse que precisava ir e, quando me virei, já tinha ido.

Dia seguinte, mesma coisa. Com muito custo, aceitou o biscoitinho de maisena que eu fizera no final de semana. Beijou-me a testa e se foi. Eu não quis perguntar o que havia acontecido, anjos nem sempre podem nos contar tudo. Eles têm seus segredos. Mas se tem uma coisa que parte o coração é ver anjo triste. Não combina.

Ele gosta de acordar tarde, como eu. Já ouviu tudo da Tiê, como eu. Nos conhecemos num dia em que ele surgiu no jardim, todo sem graça, perguntando se eu tinha linha e agulha. “A bainha da minha blusa…”, foi explicando. Peguei minha caixinha de costura e, enquanto lidava no remendo, perguntei se aquela roupa não estava muito grande. Logo ele, tão miúdo. Ele disse que gostava daquele jeito, assim o vento lhe fazia cócegas. Fosse justa, não daria certo. Entendi. Fazia tempo que meu corpo não sentia o vento, exceto braços e rosto. O resto também carece de vento. Ajuda a levar embora o que ficou velho.

“Veja se ficou bom”, pedi, cortando a linha com o dente. Vi seu sorriso. Viramos compadre e comadre, e desde então ele sempre dá uma passadinha em casa, pela manhã. Vem conversar e comer Sucrilhos com leite. Pouco leite, “senão vira sopa”, ele ensina. Seu sorriso é uma janela de onde se vê o céu da boca, cheio de passarinhos. Às vezes, termino meu café e vou cuidar da vida. Ele já é tão de casa que nem preciso fazer sala para ele. No caso, fazer cozinha. Quando ele se despede, espicho o olho na tentativa de flagrar como é que ele vai embora. Nunca consigo.

Terça não o vi. Deixei a caixa de Sucrilhos bem à vista na bancada. Saí, pus recado na geladeira: “Fique à vontade. Volto logo”. Quando retornei, a tigela estava limpa (e sei que ele não gosta de lavar louça). Os ímãs, intactos. A cozinha, que fica com cheiro de sabonete de criança quando ele vem, só tinha cheiro de azulejos e panelas e temperos.

Quarta-feira, e ele não veio também. O que será que deixa um anjo triste? A gente tem sempre uma vaga ideia, por conta do cinema e dos livros e das histórias. Existe a tristeza própria e a tristeza alheia. Ambas fazem o mesmo estrago em nós. Não sei se anjo já foi gente e, nesse caso, se ainda vai tornar a ser. Ou se nem uma coisa nem outra, ou se tudo junto e mais um pouco. Só sei que passei mais tempo na cozinha nesse dia. Esperando.

Quinta e nada. Seria ele quem precisaria de mim, agora? Acostumei-me a apenas contar com ele sem, contudo, oferecer-lhe nada além de Sucrilhos. Mas eu só sei fazer a guarda dos meus filhos, e olhe lá. Como se cuida de um arcanjo? Quem é sua mãe? Senti saudades, chamei. Veio o abelhudo do gato, em vez. Notei: passei a usar roupas mais largas depois que o conheci. Para aguardar as cócegas do vento, soprando as novidades.

Sexta-feira chegou, e com ela a frente fria e os livros que encomendei. Desembrulhei-os, achei que ele poderia gostar de um deles. Deixei-o ao lado do Sucrilhos e fui trabalhar. Quando voltei, corri até a cozinha. Dentro da pia, a tigela. Os ímãs desalinhados na geladeira. Não achei o livro. Em seu lugar, um girassol recém-colhido. Tudo em paz, então. Anjos também têm seu tempo de resolver as coisas. Foi quando ele surgiu por detrás de mim e, feito criança, “Buuuuu!”.

Já ia ralhar com ele, não gosto desses sustos. Mas ele abriu seu sorriso de céu e apontou para o bolso da calça. Dei água para o girassol e fui buscar a caixinha de costura.

17 comentários em “Tristeza de anjo

  1. Sabe que qdo a gente se encontrou, eu nem tive tempo de falar o qto seus textos me fazem bem? Sempre que eu leio um, eu me pergunto, por que ainda não li todos?é como eu com os livros do Saramago. Cada vez que eu leio fico doida pra ler outros, até chego a comprá-los, mas ler que é bom… acho que sou muito preguiçosa… bom, mas queria te dizer que o que eu gosto mais nos seus textos é que quando estou chegando no final da leitura, vem crescendo a ternura e a emoção e quase sempre termino com uma lágrima caindo… não de tristeza, mas de admiração, contemplação desse momento, mas ou menos como eu me sinto ao ler os livros do Saramago… só que ler os seus textos, é bem mais fácil para uma preguiçosa como eu… beijos com saudades.

    Curtir

  2. Eu já nem tenho mais palavras pra descrever o bem que seus textos me fazem. Esse entrou pra lista dos favoritos.
    Lindo demais da conta…
    Beijo.

    Curtir

  3. Texto comovente…ainda mais porque desconfio que meu anjo da guarda anda bem triste ultimamente. É que eles tentam alegrar a gente mas nem sempre funciona, né. Aquela coisa de estar vivo, um dia de cada vez.

    Adoro seus textos.

    Curtir

  4. Olá Sil, td bem?! Estou encantada com seu talento, sensibilidade e doçura….Que delícia de texto..Me fez bem! Me fez viva, me fez sentir emoções, relembrar pessoas, lugares e sonhos…
    Obrigda pelo despertar através das palavras 🙂
    bj grande no coração!

    Curtir

  5. Eu tenho 2 anjinhas na minha vida, uma de olhos azuis e a outra de olhos verdes – as minhas amadas filhas.
    Mas a cada dia, Deus tem me enviados anjos de todos os sexos, etnias e idades. são pessoas que surgem, como se do nada e estão sempre dispostas a me ajudar, sem me pedir, absolutamente nada.
    Adorei o seu texto! Muito lindo! Fiquei emocionado! Parabéns! Beijos

    Curtir

  6. Oi Sil… que lindo anjo eu vislumbrei… pelos seus olhos e sua escrita.
    Meu anjo não sai da cama se não estendo as cobertas, fica lá no meu lugar aproveitando o quente que o corpo deixou… Então pra garantir que ele vai me acompanhar eu arrumo a cama, mas não todos os dias… tem dias que o deixo sossegado, dormindo um pouco pois ele merece…
    beijinho
    Jo

    Curtir

  7. Ei Sil que delicia vir aqui logo cedinho e te ler, senti um quente tão bom, especialmente pelos sucrilhos que eu adoro, com pouco leite.

    Obrigada por florir sempre sempre, florir meus olhos e me deixar mais feliz.

    Mil beijos

    Curtir

  8. Até os anjos têm seu tempo de resolver as coisas…nós é que não temos paciência para ver as coisas se resolverem por si sós….Ficamos impacientes, aflitos, achando que podemos e devemos fazer algo que acelere esse andamento….bobagem…tudo a seu tempo. Linda semana pra vocês, Sil. bjs

    Curtir

Quer comentar?