A bailarina

Ilustração: Joel Ormsby/Flickr.com

Desde que não viva comigo, nem me deva nada, eu gosto de quem inventa a própria realidade e vive de acordo com ela, nenhuma outra. De quem gira noutra órbita, vibra noutro padrão e não quer nem saber quem pintou a mula preta. De quem está à margem, alheio às estações, sem saber que dia é hoje ou o que vai comer amanhã. De quem não se rende ao esquadro, mesmo que não saiba o que é isso e, de uma forma ou de outra, aguenta as consequências. Como a bailarina da rua.

Não pergunte por que lembrei. Tenho tantas coisas arquivadas na cabeça, procuro uma e vem outra. Centro velho de São Paulo. Avenida Ipiranga, Praça da República, Avenida São Luiz, algo de Edifício Itália, não lembro com exatidão. Só sei que foi por ali. Minhas lembranças visuais, vez por outra, não têm legendas.

Sendo assim, uma parte desta história foi pras cucuias, já que não lembro o que eu fazia, se estava calor ou frio, aonde fui depois. Estimo que tenha sido na década de oitenta, quando eu perambulava pela região praticamente todo santo dia. Não importa, porém. Um fragmento desse arquivo mental está intacto. O fundamental, o que resistiu ao tempo.

Em frente a uma dessas joalherias classudas – quando elas ainda se instalavam com razoável tranquilidade nas ruas – eu vi uma mulher. Jovem, maltrapilha, jeito de mendiga e ares de doidona. Diante da vitrine milionária, ela protagonizava um delicado balé. Ora atenta aos quilates em exposição, ora obcecada pela própria imagem refletida no vidro transparente, blindado à prova de pobreza. Nos braços, um amontoado de trapos, gentilmente embalado em carinhosa coreografia, como se houvesse ali um bebê. O bebê que, talvez, tivera. Ou que sonhava um dia ter. Ou nada disso, eram apenas seus farrapos mesmo. Às vezes, a gente põe poesia onde só cabe prosa.

Quem sabe a bailarina da rua já não usara um diamante? Assim como tem pobre que endoidece se fica rico, também tem rico que amaluca se empobrece. Que será que ela via na vitrine, além do evidente? Sobretudo, o que ouvia? De quais notas era feita sua sinfonia?

No balé-solo da Dona Doida, monólogo de loucura e diversão, a calçada era seu palco. As jóias, o luxuoso cenário. A cidade, o imenso teatro, plateia e camarotes. Quem mais comprou ingresso, além de mim?

Numa joalheria nada custa pouco. Dançar em frente a ela, no entanto, é de graça.

8 comentários em “A bailarina

  1. Infelizmente, a realidade de quem é obrigado a viver com alguém preso (ou totalmente liberto) em um mundo paralelo não é cercada de poesia! Mas isso é outra estória… A verdade, Silmara, é que os seus olhos sensíveis veem beleza onde muita gente só vê dor. Obrigada por suas palavras!
    Vivi

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  2. Silmara,
    Invejo essa bailarina, sua coragem… Aliás, invejo sua falta de necessidade de ter coragem. A “lucidez” dos “normais” é cárcere.
    Grande abraço.

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  3. intrigante… esse mundo paralelo, que não cabe dentro de nós, sai e dança nas ruas e tantos fingem não ver, quem sabe o medo de se sentirem arrebatados pra dentro dele como um buraco negro, quem sabe muito mais colorido que nosso cinza sério de lucidez e realidade…
    beijinho Sil
    inté mais…

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  4. Enquanto via sua “bailarina”, ouvia a música que marcava o compasso da dança, e tinha sons e letras de Chico:

    “Ela desatinou, viu chegar quarta-feira
    Acabar brincadeira, bandeiras se desmanchando
    E ela inda está sambando…”

    “Só a bailarina que não tem
    Medo de subir, gente
    Medo de cair, gente
    Medo de vertigem
    Quem não tem…”

    “Quem não inveja a infeliz, feliz
    No seu mundo de cetim, assim,
    Debochando da dor…”

    “Se ela dança no sétimo céu
    Se ela acredita que é outro país
    E se ela só decora o seu papel
    E se eu pudesse entrar na sua vida…
    …Me ensina a não andar com os pés no chão
    …Diz se é perigoso a gente ser feliz…”

    ( Trechos de: Ela Desatinou/ Bailarina/ Beatriz)

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