O primeiro – e único – tapa que levei da minha mãe é tão antigo e vivo quanto a falta que ela me faz.
Ela fazia tricô para fora, como se dizia. Ou era o contrário. Porque vinha de fora para dentro de casa o dinheiro que ela recebia em troca dos casaquinhos de bebê, sapatinhos e mantas tricotados à máquina. E para dentro dela, também, os elogios que recebia, ficava tudo tão bonito. Nenhum trabalho é para fora, acabo de descobrir.
Um dia, eu quis ajudá-la. Adiantaria aquela encomenda. Um macacãozinho, talvez? Aproveitei uma saída sua do quarto, que fazia as vezes de ateliê. Postei-me de joelhos em sua cadeira, alta para mim, e arregacei as mangas. Parecia não haver segredo. No entanto, antigamente as máquinas de tricô não eram como as de hoje. Na Lanofix verde da minha mãe, uma única carreira exigia várias manobras, num processo lento e delicado (mais rápido, porém, que o tricô feito à mão). Passa o carro para a direita, ajeita aqui e ali, tira o pente com os pontos, encaixa o pente de volta, passa o carro para a esquerda. (‘Carro’, para quem nunca tricotou numa máquina, é aquela peça que vai de um lado para o outro, tecendo a malha.) Determinada em minha intenção, me pus a trabalhar. Não dei bola para nenhuma das etapas. Tudo que fiz foi levar o carro para lá e para cá. Não estava ficando muito bonito. Mas minha mãe sempre dizia que, no começo, não dá para ver direito como a peça vai ficar. Continuei. Carro para cá, carro para lá, que coisa mais fácil tricotar! Eu também poderia começar a ganhar meu próprio dinheiro, por que não? O carro para lá e para cá. Poderíamos compartilhar a máquina, mamãe e eu, enquanto eu não comprasse a minha própria. Será que vendem para meninas de cinco anos? O carro para cá e para lá. A malha continuava meio esquisita, mas ela tinha falado, no começo é assim. E o carro para lá e para cá. Ela voltou ao quarto, um grito. Eu não entendi nada, mas ela sim: a encomenda tinha ido para o brejo.
Foi um só, e bem dado. Não lembro onde pegou. Corri para o banheiro, me tranquei. Ela veio atrás. Pediu para eu abrir a porta, não abri. Ficamos assim: eu chorando do lado de dentro, ela chorando do lado de fora. Fosse ópera, seria acompanhada de uma tristonha sinfonia. Fosse cinema, usariam aquelas câmeras suspensas e mostrariam a cena lá de cima: finas porta e paredes a separar mãe e filha. O meu choro, dos olhos para fora, não era de dor, e sim de incompreensão. Tapas doem mais pelo que representam do que pelo que são. O dela, banhado em remorso, vinha de fora para dentro de seus olhos. Tal o verdadeiro sentido do tricô fabricado para as vizinhas e a parentela. Aquele, de que falei antes.
A mão viu no tapa a solução para o que ela, mãe, não soube expressar na hora. A mão viu a noite passada em claro, consertando o estrago. A mão viu a freguesa cobrando a encomenda. A mão viu o que os olhos não viram. A mãe, cega, obedeceu à mão. E elas, mãe e mão, eram tão doces.
Não tenho a quem perguntar como a história terminou, então rio sozinha. Não sei onde está a velha Lanofix, perdeu-se nas mudanças. Encontrei-a por acaso no meio das lembranças, encaixotadas em meu porão particular.
Emocionei-me, pois minha mãe sempre me dava uns tapas (merecidos, tenho q dizer), mas nenhum deles doía tanto em mim, como doía nela. Hoje sei que mãe é o amor personificado. Minha mãe Elsa, linda, linda!!!
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Nem sempre as lembranças são boas, mas mesmo assim são importantes. De todo jeito, você esqueceu uma parte, o que mostra o quanto foi insignificante o fato. A maioria dos adultos tem uma lembrança dessas. Quando a mão que dá a palmada é a mesma que acaricia, as lembranças se esvaem…
Beijo, Silmara.
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Quando era criança levei um soco do meu pai. Tenho desvio no septo até hoje por isso. Lembro dos lenços ensanguentados até hoje. Acho que ele mal se lembra. Hoje faço muita terapia e digo, POR FAVOR nunca bata nos seus filhos. Se educa com autoridade moral e nao com poder. Paz e bem.
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Silmara, sei que me repito, mas sua crônica é LINDA! De verdade, muito linda! Bacana imaginar a cena se fosse vista no cinema! E li (num comentário acima) sobre lembranças de beliscões…também levei, um só – daqueles! – do meu pai, e nunca me esqueci. Lá em casa não tinha Lanofix, mas meu pai tinha uma máquina Singer e nessa a gente não podia tocar, jamais! Meu pai era sapateiro e a máquina está lá, não deixei que vendessem. Quanta emoção uma crônica cutuca, hein? um beijo.
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Sil, querida, saudades de suas palavras. Estive ausente, mas sempre presente. Lindo o texto; emocionante. Me deu uma dor de saudades do meu pai!
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Que lindo! Todas as lembranças de tapas, beliscões deveriam ser assim, sem grandes dores e queixas, porque a maioria dos pais não quer agredir.
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Olá querida!!!!! Quanto tempo!
Desculpe, mas estive (estou) tão atarefada no trabalho, que está dificil ler e comentar.
Você é incrível e eu preciso achar tempo pra “te ler”, pois é tão inspiradora a sua forma de ver a vida.
Saudades e PARABÉNS!!!!
Você é uma escritora/ pessoa incrível.
bjs
Cris Prado.
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Eu levei muitos tapas. E cintadas. Eu devia ser uma menino arteiro. Alguns deixaram marcas que ainda doem, preciso confessar. Mas é preciso olhar um outro lado. O mesmo lado da mão que tecia sempre a Lanofix…
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Sempre maravilhosos!
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Sil querida Sil….
como gosto de você, da sua poesia, da sua docura.
Para pensar na importância dos gestos para com os pequenos…Penso tanto nisto.
Me escreva um pouco no nosso então para me contar de ti e dos teus.
Beijos,
Ana Paula
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Seus textos aquecem a alma. Estou encantada!
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Ah, Sil, os tapas mais doídos são os da incompreensão, com relação à boa intenção do filho. Mas são os mais doídos para as mães, que ao perceberem, não têm como voltar atrás…Isso ficará para sempre na memória dos pequenos…Comovente essa sua lembrança, todos passamos por isso. bjs
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Esse tocou fundo. Muito bonito.
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A história ainda não terminou…
a menininha cresceu e nunca esqueceu daqueles fios…
tecendo continuou…
começou com fios e terminou com palavras
e, assim, puxou o Fio da Meada
Lindo texto!
bjs
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Silmara,
A-DO-RO tudo que você escreve!
Você é um doce como sua mãe, tá no gene, e artesã também: das palavras.
beijo
Sílvia
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Olá!
Você pode ajudar o Brasil a continuar livre da poliomielite! Ajude a divulgar informações aos papais e mamães, para que eles não se esqueçam de levar seus filhos menores de cinco anos para tomar a segunda dose contra a paralisia infantil, no próximo dia 14. Essa simples atitude faz com que as crianças do nosso país estejam protegidas de uma grave doença.
Caso tenha interesse em ajudar a divulgar a Campanha Nacional de Vacinação Infantil, e para obter mais informações ou materiais da campanha – como o filme e banners -, entre em contato com comunicacao@saude.gov.br
Obrigado por sua colaboração!
Ministério da Saúde
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Ah, Silmara! Seu blog é para mim uma fonte de inspiração, de consolo, e de tantas outras sensações boas que nem sei nomear. E seus textos nunca traem essa minha busca. Seja nas suas crônicas ou memórias, em tudo há algo que desperta essa esperança de conseguir ver as coisas pelo seu lado mais bonito.
Que Deus abençõe esse seu dom.
Beijo grande.
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No tricotar da vida além de saber entrelaçar os pontos é preciso experiência ao arrematá-los, pois é o que dará boa forma e eternizará a criação. Tudo indica que sua mãe foi mestre na sua educação, trabalhou cuidadosamente para que nenhum ponto se perdesse. Beijo.
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OI Sil…
também levei uns tapas na infância, uns tapas que tinham essa sensação de incompreensão… sobrevivi e sinto muita falta daquele tempo viu.
bjs, lindo texto!
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Lindo Sil…
a lembrança vem de dentro pra fora… junto com a saudade e o sorriso.
bom fim de semana
Josi
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