As botas

Ilustração: Sai Pennell/Flickr.com

Pudesse, eu andaria de botas o ano inteiro. De cano longo. Na primavera, para inaugurar a amizade com a frente-única em flor. No verão, para inventar composições inusitadas. No outono, para combinar com a roupa nova das árvores, folhas amareladas e avermelhadas. No inverno, para me confundir com todas as mulheres.

Na década de 70 a rua onde eu morava, em São Paulo, era famosa por seus calçados. Quase todas as casas se transformaram em fabriquetas. Garagens viraram lojas. Toda portinha fervia nas manhãs de sábado. Pegar um táxi do outro lado da cidade para voltar para casa era simples: qualquer taxista conhecia a Rua Natal, no bairro da Mooca. Meu primeiro par de botas foi comprado ali – eu tinha quantos, uns seis anos? Em couro azul-marinho, um zíper que ia do tornozelo até quase o joelho. Cobiçadas por muito tempo na vitrine da Blue Star, antes de serem minhas. Naquele tempo, as coisas demoravam mais para acontecer. O dinheiro era curto. O desejo e a espera, longos. Hoje não há tempo de desejar; vai-se logo aos finalmentes. Estamos na era do querer abreviado.

Vinte e nove graus. Na rua, vejo a moça de saia curta e botas. Ao seu lado, a moça de calça comprida, meia de náilon, scarpin. Tenho dúvidas sobre quem passa mais calor. Ninguém se espanta com o homem de terno aguardando o sinal de pedestres, derretendo sob o sol da avenida. Todos têm, no entanto, um comentário e um olhar surpreso para a bota, em tese, fora de hora.

No dia em que ganhei as botas da Blue Star, na hora de dormir, pedi à minha mãe para calçá-las. Dona Angelina não deixou. O jeito foi adormecer abraçada a elas. Meus sonhos, por certo, contaram com uma estrela-guia diferente naquela noite. De um outro azul.

As botas duraram enquanto meus pés couberam nela. Casamentos, aniversários e lá íamos, as botas e eu. Talvez por isso ainda signifiquem tanto, tantas décadas e botas depois. O coração aperta: minha filha não se lembrará de seu primeiro par de botas. Porque o segundo, o terceiro e o quarto par vieram em seguida, senão ao mesmo tempo. Na fartura, é difícil ser nostálgico.

Botas conferem poder a quem as usa. Os gatos que o digam. Elas emprestam personalidade adicional às pernas, reforçam formas, sugerem conteúdos. Turbinam qualquer teco-teco. Longe de esconder, elas revelam o intangível sobre suas donas. O andar, mais firme, é capaz de desbravar caminhos, como fizeram os Bandeirantes. Que, aliás, usavam botas.

Uma pena as botas de cano longo só aparecerem quando faz frio. Como os morangos, antigamente. Mas hoje eles podem ser encontrados em qualquer mês do ano. Quem sabe, as botas.

8 comentários em “As botas

  1. nossa, quando eu era adolescente eu tinha um par de tênis que eu amava, usei usei usei até minha mãe jogar fora sem eu ver. lembro dele direitinho. vou pensar nisso quando tiver filhos, quero que eles saibam o que é nostalgia. muito bom o texto, como sempre!

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  2. Amiga querida,
    fiquei pensando no nosso primeiro encontro no Café com Letras: eu, de vestido azul e uma barriga imensa de 8 meses. Você, de vestido xadrez e BOTAS. Linda. Foi esta a primeira impressão que tive logo que pus os olhos em você. E, claro que as botas serviram para definir minha impressão.
    Vi seu comentário no meu blog. Estou com saudades. Precisamos retomar nosso então.
    E precisamos também nos reencontrar.
    Quando vocês vêm a BH??
    Beijos em todos.

    Ana Paula

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  3. Oi Sil
    Eu tenho uma paixão incontestável com tal calçado.
    Desde pequena era meu sonho… botas de cano alto, com zíper do lado, tive uma na adolescência, e era preta. Depois veio outra de cano mais curto que a primeira, com ziper do lado e um cadarço fininho na frente, era um charme, parecia bota de filme antigo, e era preta. Tive um Kildare botinha, ou melhor, três, uma de cada vez… Depois uma marrom que ganhei da Rosana, minha amiga, essa era de camurça, cano alto e salto baixo, linda. Um dia, comprei uma de vinil, verde escuro, com o salto e o bico num tom caramelo, (é meu xodó) e só uso muito raramente, mas com todo orgulho. Tenho também uma de camurça preta, sem salto, tipo moicano, não sei como não furou ainda…. falando em furar…. uma furou e não teve jeito, foi pro lixo, nem sapateiro deu conta dela, e por ela eu ainda choro… era de couro, vermelha. Extravagante? nem tanto, era linda e se furou é porque usei muito… muito mesmo… e não me importava com a estação… ainda bem que moro em Curitiba… o frio não escolhe época do ano e nem hora certa pra chegar, portanto, se o sol está quente, e vc está de botas, fique fria, pois até o final do dia elas serão úteis…rsrsrs
    beijinho
    Josi

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  4. Oi Sil,

    acho as botas muito confortáveis, muito charmosas e que nos eleva, mas, aqui onde moro tenho que apelar para o frio, usar botas aqui num clima normal não ajuda muito.

    bjs

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  5. Pois é, pois é!! Botas são um capítulo a parte no imaginário feminino. O meu problema é encontrar um par que me sirva, não no pé, mas na panturrilha. Quem mandou passar a vida subindo e descendo escada?

    E no quesito nostalgia, talvez nós sejamos culpadas em não querer que nossos filhos esperem, mas a grnade verdade é que nós não queremos esperar, pois compramos para nós, dizendo que é para eles. Quantas vezes você já se pegou dando um brinquedo a um filho ou filha que era exatamente aquele com que vc sempre sonhou mas nunca pode ter??

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