Som na caixa

Foto: Laura Bell/Flickr.com

Não é sexo. Nem rotina. Nem doença ou falta de dinheiro. Tampouco filho. O que põe um casamento à prova é andar junto no mesmo carro. Seja por quatro dias, quando o de um está na revisão; por anos, se as vacas são magras; na viagem de final de semana ou simplesmente no caminho para o almoço de domingo. Quando o casal coabita o mesmo veículo, a despeito da vasta literatura sobre a batalha dos sexos antes e depois de Karl Benz ter inventado o automóvel, o que está em jogo não é quem dirige melhor, quem tem mais ou menos pontos na carteira, quem usa a seta, qual dos dois é capaz de chegar ao destino sem GPS ou frentista de posto. É quem controla o som.

O condutor não deve se distrair com o dial, nem com a sequência das faixas do MP3. Caberá ao passageiro assumir as rédeas e definir a programação musical que acompanhará o casal. Nesse cenário, nada será pacífico. Quem finca sua bandeira no aparelho não deseja dividir o poder, quer reinar sozinho. Conflito à vista. O tempo todo, ambos discutirão a configuração (volume, graves e agudos) e a trilha sonora propriamente dita. Nenhuma escolha pessoal é bem-vinda. Toda individualidade será castigada. O coletivo há de vencer. Resultado: os dois bufarão, cada um de um lado, e se perguntarão onde é que foram amarrar suas éguas. Assim como o casal tem a música que embalou o início da sua história de amor, logo terá também a que representa seu fim.

O mesmo ambiente será palco de outra disputa: a temperatura do ar-condicionado. Na sua ausência, outro embate: um quer janelas fechadas. Outro as prefere abertas. Sem falar na co-direção e na síndrome de instrutor de auto-escola, comportamento incontrolável daquele que ocupar o banco do carona.

Carro é o quarto do casal sobre rodas. É quando a intimidade se desnuda. As manias, antes apenas contornos, ganham preenchimento. Sentimentos inéditos vêm à baila. No carro é onde os bois recebem nomes, e os is, seus respectivos pingos. Sutiãs são queimados no acendedor de cigarros e desabafos contra a TPM eclodem entre um semáforo e outro.

Nada é páreo, porém, para o controle do som. Que não deveria ser chamado de opcional. Muito menos de acessório.

6 comentários em “Som na caixa

  1. Não sei dirigir ainda. Mas não passa deste ano! Engraçado que sempre me imagino no carro ouvindo alguns nomes novos de cantoras da MPB. Ou jazz. Bom saber de mais uma exigência pra um novo amor. (Que é a única, por enquanto. rs)

    Curtir

  2. Uma verdade muito bem interpretada nesse lindo texto! O poder nas mãos faz a coletividade ficar em segundo plano.

    Saudades daqui!
    Beijos na alma!
    Layla Barlavento
    culpadowalter.blogspot.com

    Curtir

  3. Minha mãe fez carteira há pouco. Quando ela pedia para dirigir, meu pai dava todas as desculpas possíveis para não deixar.
    Um dia, eles foram para Curitiba e, na volta, a vista do meu pai embaçou por causa da saúde frágil. Resultado: minha mãe dirigindo nas rodovias e meu pai tendo mais uma taquicardia. E nem vou mencionar a trilha sonora.

    Hoje ela vai ganhar um carro novo. É surpresa. A paz reinou.

    Curtir

  4. Oi Sil
    Por aqui é um terreno de paz… tomara que isso dure… muito tempo ainda.
    Aprendi a escutar música internacional, romântica com ele, (hoje aproveitamos pra estudar inglês, escutando umas musiquinhas) e ele aprendeu a gostar de MPB comigo (que moldei o gosto musical da minhas crias e das sobrinhas também)… No carro, o Théo pede Pato Fu e Bea, Maria Gadú, os vidros do carro ficam fechados “pra economizar combustível”, e abrimos quando vamos mais devagar pra pegar um ventinho… o volume do som não é muito alto, e cantamos todos juntos as músicas que gostamos…
    É paz na estrada e boa viagem!
    Beijinho
    josi

    Curtir

  5. Oi Sil,

    bem, você sempre nos traz reflexões ótimas.
    O som do carro é prova de fogo, nele percebemos até onde vai o abrir mão da coisa, o respeito… é fato que é muito difícil conviver com o outro, porque somos diferentes, pensamos diferentes e ouvimos diferentes, então nesses momentos deveria acontecer aquela coisa do ‘abrir-mão’, respeitar o outro, dividir e tal, mas, na realidade é como você disse, é nesse ambiente o quarto sob quatro rodas, daí as intimidades vem a tona, como a vontade individual de cada um. Eita muído viu!

    Ps.: eu e meu irmão temos isso dividindo o mesmo carro, imagine os casais? kkk
    bjs

    Curtir

Quer comentar?