A pergunta

Ilustração: Frangelica/Flickr.com

Nina, três anos, quer saber:

– Mãe, a que horas a gente vai morrer?

Meu avô morreu às oito e quarenta da noite. Nunca soube que seria nesse horário, até aquele quatro de fevereiro, véspera de Carnaval. Um bom exemplo para dar a ela. Mas não me lembrei na hora.

Eu não sabia que Leo morreria às três horas do dia sete de março. Poucas horas antes, eu ainda acariciava seu pelo macio e branco. Gatos sabem da sua hora. Gente, às vezes, não.

Antigamente, nos velórios, era costume os mais velhos fazerem as crianças beijar os defuntos. Pequenas demais para a altura do caixão, algumas eram erguidas e, suspensas no ar como a alma de quem partira, despediam-se a contragosto. De volta ao chão, com olhos de espanto e medo, umas saíam correndo. Outras permaneciam ao lado do corpo, paralisadas de frio, o frio que vinha da face sem cor. Em todas elas, a marca comum: haviam beijado a morte. Eu tinha as minhas estratégias para evitar a hora do beijo fúnebre. Fugia, me escondia. Sumia. Minha mãe dava cobertura. Eu não sabia que ela morreria ao entardecer de um Dia dos Namorados.

Quando uma estrela morre, em indescritíveis e poderosas explosões, ganha outro nome: supernova. Ninguém sabe, no entanto, a que horas isso vai acontecer. De nada adiantaria. Estrela, mesmo morta, eu beijaria.

A pergunta da Nina não é sofisticada. Ela não quis detalhes da morte, nem filosofias a respeito, tampouco aquilo a preocupava. Ocorreu-lhe perguntar numa hora em que brincava distraída e um pensamento qualquer pousou sobre seus cabelos anelados, tal uma borboleta. Simples assim. Eu é que tentei pensar numa resposta sofisticada, cheia de nove horas. Bobagem. Respondi: “Na hora certa, filha”.

Satisfeita, ela retornou às suas brincadeiras. Corri anotar a pergunta num caderninho, junto a tantas outras que meus filhos soltam, assim, sem hora marcada. Não poderia deixar para depois. É fato: a gente pode morrer a qualquer hora. Aproveito. Por ora, não é agora.

16 comentários em “A pergunta

  1. Silmara, como minha mãe costuma dizer (e o ditado é antigo): ‘ninguém morre sem chegar o dia..’.ou ‘pra morrer, basta estar vivo’. Muito delicada (e poética) sua crônica, ainda mais porque o assunto é de difícil trato! beijo.

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  2. Tenho medo de velorios.Ver a pessoa morta a sua frente,deitada,todo mundo olhando,chorando. Porém,nunca toco , sempre tenho medo de ver.
    Belissimo texto novamente,não consigo conversa com crianças ._.

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  3. Ontem eu fiz um simulado do ENEM no colégio e um dos enunciados explicava o processo das estrelas velhas, explosões e supernovas. Imaginei isso em um bonito texto. Um texto brilhante.

    E não é que apareceu?

    Beijo, Sil!
    Camila
    ilimitada-mente.blogspot.com

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  4. Silmara,
    O sobrinho de uma colega de trabalho perguntou a ela quando as pessoas morriam. Não lembro qual resposta ela deu… Ela disse que ele fechou os olhinhos e disse: “Agora, agora, agora.” O que será que ele estava sentindo? Alguma dor, certamente. Às vezes eu quero morrer e não entendo porque as pessoas dizem que é pecado pedir pra morrer. Será que é? E quando a gente pede, será que a gente quer realmente? Acho que não. Depois que a dor passa, a gente dá graças a Deus não ter morrido. É a vida…
    Bjs

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  5. Oi, Querida
    Sua resposta, para uma criança, foi corretíssima. Mas nem sempre é na hora certa. Perdi um irmão de 18 anos, não posso crer que era a hora certa de ele partir. Adoro seus textos e sua sensibilidade!
    Beijos!

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  6. Oi Sil…
    Poi é… a morte só na hora certa mesmo e ainda bem que não sabemos que hora será a derradeira.
    Lembro da morte do pai… era pra ser um dia especial pra mim… Eu tinha 5 anos e era a formatura do Jardim de Infância… mas como eu só tinha 5 anos e faria 6 em Janeiro, não teria idade para ir para a primeira série, então, fui a única a “reprovar”… coisa estranha de se explicar pra uma criança de 5 anos é a falta de sensibilidade das professoras que não me pouparam do vexame.. Eu de toga e sem canudo, vi minha mãe sair de fininho quando meu cunhado apareceu sem mais nem menos e a levou consigo pois meu pai havia passado mal…. eu só soube desse detalhe muito tempo depois, mas na hora talvez tenha intuído o motivo, e com muitos motivos abri o berreiro… fiquei aos cuidados de conhecidos que soberam o motivo e não me falaram nada… naquela noite ele se foi, não sem antes pedir perdão a minha mãe por eventuais desapontamentos e brigas… ela o perdoou da boca pra fora e demorou quase uma vida pra que o perdão se consolidasse de verdade no coração… a vida é assim mesmo, e a morte é tão mais urgente que não espera por nada… se ele dependesse do perdão pra morrer, teria vivido muito ainda…
    Eu não o vi no caixão, se vi, tratei de apagar, já me bastou vê-lo na cama, parecia dormir, mas nunca se dorme tão profundamente num quarto que logo ficou lotado de amigos e parentes… me tiraram de lá e fui acabar meu sono inocente na casa dos meus padrinhos. Esse padrinho sim eu vi no sono esterno e tenho certeza que ele me esperou, não pra pedir perdão, mas pra ouvir da minha boca que eu estava bem… eu falei o que ele queria ouvir e pedi a Deus que aquela agonia terminasse. Naquela madrugada ele se foi e senti mais que a ida do meu pai, não por falta de amor, mas por excesso de vida e de convivência… como um pai, mesmo…
    Beijinho Sil… e descupe o tamanho do comentário…

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