A rolinha (segunda – e última – parte)

Ilustração: Charis Tsevis/Flickr.com

No dia de São João, comecei a cuidar de um filhote de rolinha que caíra do ninho. Foi minha promessa à sua mãe, que sequer conheci. Embora eu soubesse que não haveria garantias, fiz de conta que não sabia. Fiz de conta que era eu também uma rolinha, para ver se entendia o que seus pequenos olhos me diziam. Fiz de conta que alimento e calor lhe bastariam. Fiz de conta que era normal levá-lo à casa dos outros para não atrasar o horário das suas refeições. Fazer de conta ajuda um bocado quando não há outra saída.

No dia de São Pedro, Beetle, assim batizado pelas crianças, não comeu direito. Recusou a água fresca. Seu bico já não procurava abrigo entre meus dedos. Não lhe importava ficar nesta ou naquela posição, numa já doente resiliência. Tanto fez o sol da tarde, tomado através da janela do quarto. Nada foi capaz de lhe aquecer. Às sete da noite cobri sua gaiola, apreensiva: Beetle dormiu sem jantar. Travou o bico como se dissesse “Não, obrigado”. “Então amanhã tiramos o atraso”, anunciei. Mas se houve algum atraso, foi o meu. Às onze, fui lhe dar boa-noite. Pé ante pé, para não acordá-lo. E vi que havia perdido seu último instante.

Num instante de igual tamanho, lembrei dos meus bichos que já morreram, tantos quanto pude. Dois cães, um hamster, algumas tartarugas, dezenas de gatos. A maioria, sepultada com pompa e circunstância em caixas de sapato sob as terras da vila onde morávamos. Outros tantos, sumidos. Eram bichos livres, desaparecer fazia parte. Olhei-me no espelho do banheiro e vi como estou velha. Como Beetle era novo. Como ele era pequeno perto de mim. E grande, para as formigas que já começavam a passear nele. Lembrei das aulas no colégio técnico, com o escalímetro que ajudava a entender a proporção de tudo. Deus também tem um desses.

Uma pena Beetle não ter conhecido a nossa jabuticabeira. Só o fez de vista, o que não é a mesma coisa. Ele conheceu gatos mansos, porém. O que não é para qualquer passarinho. Sinto não ter ouvido sua voz. No final, fizemos exatamente como havíamos combinado, ele e eu: um dia de cada vez. Foram cinco, no total. E quem é que sabe o quanto isso é pouco, ou o quanto isso é muito? A vida é inexata, embora regida por tanta exatidão. Quanto à promessa feita, mamãe-rolinha há de me perdoar. Mães se entendem.

Quando as crianças acordaram, dei assim a notícia: “Beetle se foi. Ele aprendeu a voar.” E fomos juntos procurar uma boa caixa de sapatos.

9 comentários em “A rolinha (segunda – e última – parte)

  1. Nossa, Sil, já perdi a conta das rolinhas e passarinhos que tentei salvar, após cairem do ninho…. e nenhuma conseguiu superar o acidente….Engraçado que a gente não pára de tentar, mesmo já sabendo o final. Nos enganamos, dizendo que “dessa vez vai …” Bem, estou escrevendo somente para dizer que, até setembro, como estaremos nos mudando, caso não consigamos levar todas nossas árvores, queria lhe deixar em doação, nossa jabuticabeira. Eu já lhe disse que ela carrega o ano inteiro? e só tem 1,80 por aí….Quem sabe, se não conseguir levá-la, ficarei feliz em saber que outros passarinhos estarão usufruindo de toda a doçura que ela produz…É só atravessarem a rua…Não quero deixá-la pois sei que outro morador poderá arrancá-la, e simplesmente jogá-la em alguma caçamba de lixo…Agora mesmo, ela está cheia de jabuticabinhas minúsculas verdinhas…. Fica aí meu testamento…rsrsrsrs

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  2. Como sempre, bom gosto e criatividade nos textos , amooo! muito tudo isto que vc escreve. Silmara, eu já disse um dia eu quero ser assim como vc, maisss… já que não sou, eu como mamão todo dia é a unica fruta que não sobra na minha fruteira por causa de uma prisão de ventre que me persegue. beijos e Boas vibrações para vc…Ah ficarei feliz se me adicionares no teu blog…

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  3. Eu sei como vc se sente. Tb perdi um filhote de sabiá, que caiu da minha mexeriqueira e nao pude colocá-lo de volta, por causa dos espinhos. Que dó. Eu pensei, um a menos para cantar as belezas da vida que anda tão dura, e meus filhos sofreram tb, mas é bom ter um gancho para falar da morte e da vida para as crianças. Parecem que eles tem uma sabedoria que acaba no dia que a gente vira adulto.
    Beijo.

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  4. Brigite – uma cachorrinha de rua que parecia um beagle gigante. Meu último carinho foi sustentar o seu corpo durante meia hora, de braços imóveis e doloridos, só para que ela pudesse respirar melhor. Agora vou fazer de conta que não foi ela que roeu todos os sapatos que ainda vejo. Faz de conta que não foi ela que quebrou meu dente da frente. Faz de conta que ela hoje dorme ao lado da Gioconda, vulgo Gigi.

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  5. Que pena…
    Desejo a você
    “Serenidade necessária, para aceitar as coisas que não podemos modificar,
    Coragem para continuar modificando aquelas que podemos
    e Sabedoria para distinguir umas das outras”.

    É uma pena não ter conhecido minha “afilhada”…

    bj

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  6. Oi Sil… ele voou com asas de passarinho e de sonho. Aquelas assas que um dia irão nos levar também para uma viagem de reencontros… Mas sem pressa, que tempo de Deus é outro.
    Lindo o texto…
    beijnho Sil
    e bom fim de semana.

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  7. Sil querida,
    quanta formozura…
    Me conta do livro.
    Já sabe, eu e a Lê estaremos aí na noite de autógrafos.
    Beijos.
    Ana

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