De quando eu não precisei sobreviver a um atentado

Ilustração: João Grando/Flickr.com

Shelley tocou a campainha de um jeito diferente naquela manhã. Passava um pouco das nove, eu estava na cozinha fatiando uma banana para colocar na granola. Será que ela precisa que eu fique com o Oscar? – pensei, estranhando a possibilidade. Shelley costumava sair apenas à tarde. Abri a porta. De fato, ela trazia Oscar pela coleira. Mas o pavor nos seus olhos era um claro sinal de que o motivo da visita não era esse. Deixei a granola para mais tarde. O calendário com fotos de ursos polares grudado na parede informava o dia: onze de setembro de 2001.

Oscar foi direto para o seu sofá preferido. Lá encontrou alguma coisa interessante embaixo da almofada e pôs-se a farejar. Enquanto isso Shelley tentava, aos soluços, me dizer o que estava acontecendo. Na hora, achei que meu inglês não estava muito bom. Pensei ter ouvido algo sobre avião, gêmeos, torres, numa prosa aparentemente sem pé nem cabeça. Ligamos a TV e, instantes depois, soube. Eu entendera certo. Engraçado como, dependendo do jeito que as palavras se combinam numa frase, o sentido pode significar a diferença entre o céu e o inferno. Não sabia se acalmava a vizinha ou mandava o Oscar parar de fuçar nas almofadas. Sharpeis babam muito.

Uma coisa é a gente contar uma história num pretérito perfeito, ainda que de perfeição duvidosa. Acontecido e explicado está. Fato consumado. Outra é fazê-lo no gerúndio, enquanto o negócio está pipocando. Até haver um mínimo de entendimento, a gente fica sem norte. Nem sul, nem leste, muito menos oeste. Principalmente quando o inimaginável se faz presente. Na TV, uma CNN aturdida ia mostrando – ainda que os repórteres não acreditassem no que estava diante deles – o que todo mundo veria depois em exaustivos replays ao longo das semanas, meses, anos. Shelley voltou para a casa dela, ao lado da minha, e pediu que ficássemos de plantão. Oscar foi embora decepcionado, era só uma velha presilha de cabelo. Eu apanhei minha granola e acampei em frente ao computador. Olhando pela janela, de vez em quando, e estranhando aquele dia de outono continuar tão bonito. De olho nos sites da terra natal para me atualizar melhor dos fatos. Veículos de comunicação do Tio Sam sofrem de um tipo esquisito de miopia. Ou hipermetropia. Ou astigmatismo. Ou tudo junto. Enxergar bem as coisas não é com eles.

Nunca me telefonaram tanto. Nunca recebi tantos emails. Não, eu não estou em Nova York. Não, eu não moro perto; moro bem longe. Não, eu não sei o que vai acontecer agora. Sim, estou com um pouco de medo. Devo ter frustrado algumas pessoas que, embora sinceramente aliviadas por mim, adorariam poder dizer que conheciam alguém que estava perto das Torres Gêmeas naquela hora, que viu tudo, que saiu correndo. Não sei como se chama esse sentimento, mas parece que isso torna qualquer conversa mais emocionante.

O fato é que, tirando o assombro e a tristeza no olhar das pessoas nos dias seguintes àquela manhã, a vida voltou quase ao normal depois.

Feliz do Oscar, que não ficou sabendo de nada.

4 comentários em “De quando eu não precisei sobreviver a um atentado

  1. nOSSA, VC SABE QUE EU ESTAVA TRABALHANDO E A ESPOSA DO MEU CHEFE LIGOU PEDINDO PARA OLHARMOS A INTERNET – EU ACHEI QUE ERA MENTIRA, MONTAGEM, NAO PODIA ACREDITAR QUE AQUILO ERA VERDADE! DEPOIS, SO SENTI UM MEDO TERRIVEL E VONTADE DE IR PARA CASA E FICAR COM MEUS FILHOS! DE LA PRA CA, NAO SEI O QUE MUDOU, SE O MUNDO ESTA MAIS SEGURO OU INSEGURO. SO SEI QUE DEVEMOS LEMBRAR QUE A VIDA E CURTA E TEMOS QUE “CURTIR” MUITO CADA MOMENTO.

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  2. Tão louco pensar que pessoas acharam “natural” os ataques, como se os americanos “merecessem”, por serem “maus” com tantos países, né? Foi um verdadeiro “dia de cão” para tantos, enquanto a vida corria normalmente para outros tantos. Beijo!

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  3. Oi Sil,

    naquele dia estava na faculdade, fiquei completamente perplexa com aquele terror, mas, apesar de sentir muito, muito mesmo pelas pessoas que morreram e pelas pessoas que perderam parentes, fiquei chocada com o alarde das pessoas no fato de terem atingido o “simbolo econômico” do país, como se esse país nunca tivesse feito nenhuma maldade com os terroristas.
    Bem, existem muitos fatores que permeiam essa crueldade.

    bjs,

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  4. Oi Sil… Aquele dia, anversário da minha irmã, eu saí cedo pra uma visita a um cliente, da rua liguei pra ela pra dar os parabéns, e quando saí do cliente as notícias pipocavam no rádio da carros e na sala de espera do outro cliente por onde passei e lá sim encontrei gente preocupada pois tinham conhecidos nem NY… quando me inteirei da situação, liguei pra mãe da Teca, minha sócia… Ela estava em Orlando com o marido e dali iam pra NY visitar o irmão e a cunhada, que também se formos conosco. A mãe da Teca estava mais tranquila, pois o Bebeto, que trabalhava em Manhatan, estava de folga naquele dia… coisas do destino, e a Teca que estava na Disney na hora do atentado, teve que sair do parque, pois fecharam tudo, estragaram a brincadeira, e o vôo dela pra NY foi adiado também. Ela contou que todo mundo estava bem assustado, nervoso, ninguém explicava nada direito, o caos… Mas passado o susto, chegaram na casa da Ro e do Bebeto e mataram as saudades deles e da sobrinha… Vui só, de certa forma, conto isso com orgulho também… pois nada de mal aconteceu com meus amigos, e tirando o lado ruim do fato todo, se é que dá pra tirar isso da lembrança, sobraram as histórias e as fotos da viagem, como por exemplo, o fato de eles terem entrado no elevador no aeroporto a caminho da alfândega, na companhia de um sujeito muito alto, de chapéu de cowboy, e a Teca nem olhar pra cima pra ver quem era, e logo o Deni começou a conversar com ele (em português), então ela olhou pra cima e viu que era o cantor Sérgio Reis, que tinha ido receber um prêmio, ou algo assim… ela ficou de boca aberta pela cena inusitada e o Deni e o cantor trocaram algumas palavras sem tietagem na base da camaradagem como se fossem velhos conhecidos que se encontram casualmente num elevador qualquer em um país qualquer, num dia comum… A vida tem dessas… Beijinhos Sil.

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