Segredos, mentiras e biscoitos recheados

Foto: Jonathan Greene

Daqui uma hora sai o almoço. No cenário dominical da sala, tenho sessenta tranquilos minutos para responder alguns emails. Uma inquietude me invade, porém. Eu a conheço bem. Danada, ela tem fome de sacarose – na forma de chocolate, de preferência. Costuma exigir de mim atitudes imediatas. Desta vez, a reivindicação era um biscoito recheado. Em troca, ela me daria paz.

No entanto, em uma hora: almoço. Não posso traçar um doce assim, na frente dos pequenos. Atrapalhará a refeição deles. Mas a minha não. E agora? A tarde de outono acena com duas alternativas: por tudo a perder, desfilando com a iguaria e ser impelida a compartilhar o pacote, ou explicar a inquietude e as exceções que se abre na vida, deixando claro que eu posso, mas eles não. A primeira não é nada exemplar. E eles não cairão na conversa mole da segunda. Seria um tal de, a partir de agora, alegar ‘inquietudes’ para tudo.

Pediatras, pedagogos e nutricionistas, principalmente os que não têm filhos, ensinam que devemos ser firmes, consistentes e coerentes na educação alimentar da prole. O tempo todo, sem direito a recaídas. Nada de metamorfoses ambulantes. Não é simples. Dizem que, depois que têm filhos, os pais aprendem a comer direito, porque precisam dar o exemplo. A eles cabe a missão de garantir nutrição adequada, pelo menos, até o final da adolescência. Depois disso, a cria estará livre para administrar seus pratos como quiser. Trocando em miúdos: para fazer exatamente o que os pais faziam, antes de tê-los. Até que estes tenham filhos. É o ciclo da vida.

Mas há uma saída. Talvez não tão ética. Ironicamente infantil: dou início a um secreto plano de ação. Preciso chegar incógnita à cozinha e abrir o armário, sem despertar a curiosidade das crianças. Em seguida, localizar o alvo, apanhá-lo e abri-lo no mais absoluto silêncio. Nessa hora, todo cuidado é pouco; a embalagem plástica do biscoito recheado é ruidosa, traiçoeira. Pode delatar a infração em segundos. E o almoço sai em menos de uma hora.

Meu filho de seis anos adentra a cozinha, sem aviso prévio. Está procurando o gato. Sinto seu olhar inquiridor, quase sou pega com a boca na botija. Trato de disfarçar, “Este armário está uma bagunça, vou arrumar um pouco”. Ele pega o gato no colo, que lança um miado de protesto. Pudera, fôra interrompido em sua sesta. Protesto ignorado, e lá se vai a única testemunha do meu delito. Ainda bem que gato não fala. Recobro o ar. Agarro cinco biscoitos, escondo-os num guardanapo e volto para a sala. “Eu pre-ci-so, entende?”. Me vi numa sessão de terapia com outros dependentes do hidrato de carbono, confessando meus crimes gastronômicos. Placidamente, retomo a leitura dos emails, não sem antes alojar os biscoitos atrás dos livros, como um segredo. Minha filha, três anos, pergunta que horas vamos almoçar. “Já, já, querida!”. É meu pecado de hoje. Nada que cinco pais-nossos antes de dormir, um para cada biscoito, não resolvam.

Aproveito os breves instantes de ausência dos pequenos na sala e os devoro, um a um. O recheio de chocolate branco se dissolve na minha boca, junto com a minha consciência. Saciedade e vergonha viram uma massa agridoce, difícil de engolir. A paz prometida não veio. Mas terá valido a pena, o almoço é daqui a pouco. E eu quero que eles comam a abobrinha.

19 comentários em “Segredos, mentiras e biscoitos recheados

  1. Silmara, quem nunca fez isso que jogue a primeira pedra! Nossa! Imagina os filhos lendo isso, um dia. rsrs Só pude rir, pelo menos era abobrinha, não era jiló ou quiabo, ou dobradinha, ou frango com ora-pro-nobis…rsrs Beijo!

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  2. é verdade que os recheios do biscoito é feito com gordua de porco? meu filho ficou doente apos comer esses tipos de biscoito e esta proibido a entrada desses tipos de alimentos em minha casa. e por isso os questionamentos. agradecido

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  3. Amei, Silmara, amei. Já tranquei no banheiro e dei descarga para conseguir abrir um pacote de batata fritas, sem os pequenos notar…..Putz, a que ponto chegamos!
    bjs
    V.

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  4. Eu confesso: Também já fiz isso( ops! faço!), chocolate no lugar dos biscoitos!
    E, para o filho que quer comer a maçã antes do almoço: “Só na sobremesa!”

    Bjocas,
    Ale

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  5. O riso saiu, “sem querer querendo”, enquanto lia aqui, na madruigada de um plantão, sozinha num consultório, aproveitando a solidão, tão desejada, depois de um dia inteiro vendo gente pela frente. E foi este o meu biscoito recheado, saboreado escondido, na calada da noite, não porque fosse ruim, mas porque não desejaria dividir esse momento com com mais ninguém!
    ( A não ser os leitores do meu blog, a quem recomendarei esta deliciosa leitura, já que hoje escrevi sobre a culpa dos pais. Ops! Hoje, já virou ontem!)

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  6. Desculpe-me, fui traída por mim mesma. Fiz o que não gosto muito: postei minhas ideias em vez de comentar as suas.
    Saiu… tô tiquim de vergonha… foi quase como comer bolachas escondida… hahaha

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  7. Ahhhh, não precisava sofrer muito assim, ficou boniiiito no texto, mas deve ter sido ruim de sentir.
    Essa “culpa” só tem “culpadas”: esquecemos que fomos crianças um dia, que tivemos desejos de comer doce antes da hora. E aí, eles não podem.
    Sou muito tranquila em relação a isso, sempre dei essas coisinhas numa hora ou noutra, de boa. E como também. Aqui, vou esquecer que tô super gorda, isso é outra história… rs
    Nascemos pra sermos felizes, melhor pagar um nutricionista que um psicólogo. Nada contra eles, mas curar coisas do corpo é menos traumático que “da cabeça”, por que as da cabeça passam, quase sempre, pelo coração, pela culpa, pela alma.
    E viva as bolachas recheadas da vida!!!

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  8. Sensacional! Eu já trabalhei por 3 meses em um acampamento para crianças diabéticas e sei a falta que um doce pode fazer, o apelo do açúcar chamando o nosso nome! hahahaha! Era exatamente isso que fazia… escondia biscoitos até debaixo do colchão!

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  9. Hahahahaha, Silmara, só você mesmo, pra revelar-nos assim nosso pequenos pecados maternos (ou paternos)… Vou rezar ums Pais Nossos e Ave Marias, pelo chocolate de um ou outro dia…
    Beijinho
    Josi

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  10. Esse negócio é uma grande verdade: uma grande mentira.

    Quando pequena, eu comia salada até dizer chega. Comia não, me empurravam. Porque hoje não posso ver nada do tipo. Dispenso “naturalmente”. Aí para comer chocolate é essa mentira toda. Como se meus pais não soubessem. Ela se estende até aos cachorros, que são cúmplices.

    Deveria entrar na lista dos “Inconfessáveis”. Daqueles que poderiam se tornar públicos, sem receio nem complicação.

    Agora, te imaginar adotando uma estratégia para comer os biscoitos foi, no mínimo, bizarro! Hahaha

    Beijo!
    Camila
    ilimitada-mente.blogspot.com

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  11. kkkkk AMEI Silmara!!! mto bom! ri mto lendo isso e foi tão real q conseguia ver suas expressões!!! rsrsrs… ah, aproveitando, passa no meu blogzinho, lembro de vc comentando uma vez sobre Campinas e li uma matéria FANTÁSTICA sexta-feira… tá td retransmitido lá! SOBRE GIRASSÓIS…. lindo!!! bjsss da Li

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  12. Sossegue, todo mundo é um pouco assim: “Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”. Com os filhos, então…

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  13. kkkkkkkkkkkk Silmara que luta foi essa?

    Você têm toda razão em tentar esconder os biscoitos, porque com certeza o almoço já era. É muito difícil não cair nessa tentação e ainda mais, esconder dos pequenos, mas, é válida a iniciativa, primeiro a saúde, depois os pecados das gulouseimas. kkkkk

    bjs

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