O fio da antiga meada

Hoje eu vou arriscar. Em vez de um texto recém-saído dos meus miolos, postarei este aqui. Eu o escrevi quando tinha dezesseis anos, para uma redação do colégio. Nem tem título. Mas lembro de o professor tê-lo lido em voz alta para a classe. Desde então, ele está guardado numa pasta vermelha de elástico (quase tão velha quanto o texto), junto a muitos outros escritos, registrados com Bic ou máquina de escrever. Naquele tempo não tinha computador; ‘pen’ era uma coisa e ‘drive’ era outra, e essas palavras ainda não andavam juntas.

Há meses ensaio mostrá-lo aqui, numa espécie de sessão retrô. Claro que, hoje, eu reescreveria algumas partes. Mas resolvi publicá-lo do jeitinho que foi escrito há vinte e sete anos, sem retoques. Certa de que os caros leitores darão um bom desconto para a adolescência ingênua que dele transborda. Pois é isso que eu, afinal de contas, era. Confesso: estou morrendo de medo. E com um pouquinho de vergonha. Lá vai.

Foto: John Ryan Brubaker/Flickr.com

“Quero um Deus que não saiba rezar, que morda a língua e envergonhe a família. Um Deus que não saiba ensinar e que não se preocupe em aprender.

Quero um Deus fantasiado de colombina, que traduza em sons toda a melancolia de viver.

Quero um Deus que morra antes de eu nascer, que é para eu não lembrar nem ter saudades dele.

Quero um Deus meu, que saiba fazer pizza e caipirinha.

Quero um Deus que precise tragar fumaça para se convencer que o mundo é uma tragédia, que se coloque num altar e, embriagado, diga que a vida é linda e que meus pais me amam.

Quero um Deus sujo, que seja pedreiro e que não ganhe nada. Quero mandá-lo embora e depois esperá-lo até que ele volte.

Quero um Deus lindo e fotógrafo, que não use flash e que xingue o juiz de futebol. Quero chorar por achar esse Deus tão lindo.

Quero um Deus morto, que não dê trabalho, e que morra sem dizer um pio, que é para não atormentar.

Quero um Deus triste e que tenha medo de avião.

Quero um Deus que me ouça dizer um palavrão e que ria, me chamando de criança.

Quero um Deus que cante desafinado e que não viva sem mim.

Quero um Deus que me dê chocolate aos sábados, e que goste de me ver de branco.

Quero um Deus gordo, que passe pasta de dente em queimadura.

Quero um Deus que saiba imitar gato e bem-te-vi. Que conte a história do boneco de pau que comeu a maçã envenenada.

Quero um Deus azul que limpe os óculos com a camisa, e que ande com os pés pra dentro, que é para eu rir.

Quero um Deus sozinho, que precise de mim e mande me chamar na escola. Que diga que vai morrer, só para me ver chorar.

Quero um Deus completamente pobre, que diga que é rico e que vai comprar a lua para mim.

Quero um Deus amigo dos ladrões e dos barbeiros, que saiba dirigir caminhão e que me ensine coisas da vida.

Quero um Deus mocinho, que é para eu ensiná-lo que o Papai Noel não mora no Pólo Norte, e sim na América do Sul.

Quero um dia de manhã ir acordar esse Deus com um pássaro ferido achado em nosso quintal, e ele me chamar de criança, fechar os olhos e dormir para sempre.”

13 comentários em “O fio da antiga meada

  1. Gosto de poesia e escrevo algumas também, mas não com tanta inspiração com a que se vê em suas poesias.

    Olha, nunca desejei Deus dessa maneira, nem quando adolescente; talvez porque sempre tive um conceito formado sobre Deus, oriundo da Teologia cristã. É claro que tal conceito evoluiu conforme evoluiu meu entendimento e conhecimento sobre a vida, à medida que Deus foi se apresentando a mim tal como ele é.

    Sempre desejei ser da minha maneira e nunca achei que pra ser de minha maneira fosse necessária a concepção de um Deus diferente, nunca quis realmente mudar o modo de ser de Deus, embora algumas vezes já desejei um de acordo com minhas mediocridades. Isto pelo fato de muitas vezes imaginar um Deus tirano, criado pelo homem. E se o homem cria, ele pode desfazer e recriar à seu gosto. Está aí a importância do conhecimento pessoal de Deus, não daquilo que o homem imagina que Ele seja, mas do que ele é de fato. Isso só se dá pela ação do próprio Deus e não pelo homem.

    Finalizando, acredito em Deus com sentimentos, e presente em todos esses momentos, como a poesia quer que ele seja. Exceto que penso haver nele algumas diferenças essenciais ao da poesia, como a eternidade, por exemplo.

    Não tenha essas palavras de forma alguma como forma de censura, até porque não há cabimento em censurar a literatura, a poesia, a livre imaginação, o desejo, o livre pensamento, a liberdade de expressão… Mas somente é uma reflexão que faço sobre a poesia e aquilo que eu penso.

    Sinceramente, parabéns por tanta criatividade, apesar da tenra idade em que escreveu. Fico admirado pela forma como algumas pessoas conseguem expressar seus sentimentos no papel.

    Não sei como você imagina que Deus seja, mas afinal de contas, quem pode entender a mente de um poeta senão Deus??

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  2. Li esse texto no dia que você postou, mas não tive como comentar.
    Adorei a Sil adolescente, projeto linda dessa mulher inteligente, sensível e escritora de agora.
    Muito, mas muito bom. Tire os outros do caderninho, que vamos gostar.
    beijossss

    Depois leio o que falta…

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  3. Nossa, esse texto é totalmente adolescente rs, todos que passarem por aqui vão se identificar de alguma forma.
    O engraçado é que quando você escreveu esse texto eu nem havia nascido, mas ele parece ser tão atual, parece ser o mesmo sentindo que tive a uns 10 anos atrás.
    Continue nos mostrando suas lembranças e preciosidades, eu como uma boa canceriana ADORO coisas guardadas a tempos rs, beijos!!

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  4. Olá Silmara,

    Que texto lindo e sensível, você já tinha muito talento desde aquela época. Se você decidir publicá-los, vou gostar muito de ler seus textos antigos.

    Sabe do que me lembrei ao ler sua crônica? Daquele trecho do Guardador de Rebanhos, do Fernando Pessoa, que a Bethânia declama no Rosa dos Ventos, que fala de um Deus menino, você conhece? Seu texto tem a mesma pureza e delicadeza daquele, adorei!

    Grande beijo, querida!

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  5. Querida Silmara!!!
    Parabéns por quem vc sempre foi!
    Feliz vc por ter em seu caminho, um professor tão sensível a ponto de incentivar seu talento, aflorado com o passar do tempo.
    Obrigada por dividir conosco algumas questões da adolescência, que as vezes esquecemos, pois já faz bastante tempo…rsrs
    É muito bom relembrar!!!!
    bjssssssssssss…
    Cris.

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  6. Sil… vc é d+! sempre foi, agora leio! rs… quem nunca desejou esse ‘Deus’? adolescencia é entrega, a minha foi… qto vivi, qto senti, td intensamente!!! Adorei cada frase! Obrigada!!! Bjs da Li… Ah! Vc conseguiu esse ‘Deus’ desejado?!

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  7. Silmara que coisa mais linda você guarda?! A adolescente sensível, capaz de ser tão humana, tão doce…
    Achei lindo, fiquei mais encantada ainda por tudo que você escreve.
    Parabéns, parabéns… muito lindo! bjs

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  8. Oi Sil… Que lindo. Seu coração adolescente tão meigo me fez sentir saudades da minha adolescência…

    Eu estava com saudades de voltar aqui… esta semana estive fora do ar, por conta de uma conjuntivite…. hoje meus olhos estão um pouco melhores, mas não quero forçá-los… só passei por aqui e fiz uma visitinha rápida… vou postar alhgo no blog só pra dar um oi..
    beijinho.

    Josi

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  9. Silmara,
    Me emocionou… Quanta humanidade nesse Deus que desejaste. Ou desejas? Fiquei pensando… Encontrei cada parte desse Deus em pessoas que passaram pela minha vida. Algumas partes ainda desejo encontrar em pessoas que passarão. Ou ficarão. Desejo que muitas fiquem.
    Lindo texto, lindo. Obrigada.
    Su

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