O reencontro

Ilustração: Daniel Jacobino/Flickr.com

Tive um reencontro especial, dia desses. Foi na casa do meu pai.

Ela, que por instantes esqueci o nome. Calculei sua idade: perto dos trinta e cinco. Quando a vi, o burburinho da conversa na sala, com palpites sobre as eleições, foi ficando longe, bem longe. Enquanto a abraçava, era o barulho das portas na minha velha casa, os sons do rádio na cozinha me acordando todas as manhãs com o programa do Zé Bettio, a conversa dos meus avós no quintal, as nossas brincadeiras, Anete e eu, que tomavam conta do espaço. Fiquei aliviada ao recordar seu nome. É feio não se lembrar como a filha foi batizada. Ainda que ela seja uma boneca.

Ele, cujo nome veio fácil: Manequinho. Embora fossem irmãos, não sei qual dos dois nasceu primeiro. O que faz de mim uma mãe, para dizer o mínimo, relapsa. Mas o que se há de fazer? Ninguém faz certidão de nascimento para um boneco.

Anete não fazia nada. Era um bebê que só abria e fechava os olhinhos quando a deitavam. Está com a roupinha tricotada pela minha mãe: um conjunto de blusa e calça rosa e branco, com três florzinhas verdes bordadas no ombro, boina branca e sapatinhos cor de rosa. Ainda abre e fecha os olhos, ligeiramente carcomidos pelo tempo. Me olha com a mesma doçura de antigamente. Pergunto a ela se estou muito diferente, adianto que ela não mudou nada. Ela diz ter estranhado meus cabelos tão curtos. Quer saber de todos em casa, entristece-se quando conto que mamãe se foi, há tempos. Deduzira, no entanto, que algo tivesse acontecido. Dali, de dentro do armário, ela só ouve a voz do avô. Mamãe era sua referência de avó, já que a paterna nunca existiu.

Manequinho, dizia a caixa colorida de papelão, fazia xixi quando tomava mamadeira. Vinha até com peniquinho. Veste o único macacão que ganhou na vida, verde-água, também feito por Dona Angelina. Apesar dos anos sem vê-lo, sinto-me bastante à vontade para conferir o que povoou a minha fantasia quando eu era pequena: seu pipi. Está lá, intacto. Assim que o pego no colo, ele pede para que eu o mude de lugar no armário; já lera todos os livros guardados ali. Seus cabelos loiros continuam repartidos de lado, do mesmo jeito daquela época. Homens não gostam muito de mudar o penteado, mesmo. Os dois são de Touro ou Capricórnio. Eu só ganhava boneca – e boneco – no aniversário ou no Natal.

Quando a gente sai da casa dos pais, costuma deixar nela uma coisa ou outra, que é um jeito de nunca esquecer as origens, garantir o pertencimento, perpetuar o umbigo e tudo o que ele ligava. Embora, como os animais fazem com suas crias, eu não faça ideia de aonde tenham ido parar os outros ‘irmãos’ de Anete e Manequinho. Todos, assim como eles, saídos do ventre da minha imaginação. Também não é necessário explicar aos dois o motivo da minha ausência naqueles anos todos. Bonecos, como animais, sabem que nada é para sempre, não costumam ter autopiedade. Eles vão tocando suas vidas, como deve de ser. Gente é que se preocupa com isto e mais aquilo.

Prometi ir vê-los de vez em quando. Um dia, quero que brinquem com meus filhos de carne e osso, seus ‘meio-irmãos’. Por ora, é melhor que continuem morando com o avô, meu pai, protegidos pelo armário. Filho de verdade não é fácil; o Luca desmonta tudo o que vê, e a Nina é da pá virada.

8 comentários em “O reencontro

  1. Oi Silmara,
    Como sempre, amo seus textos.
    Eu tive um Manequinho também! rs
    E meus bonecos também eram sempre ou taurinos ou capricornianos…
    Deixei muitas coisas na casa de minha mãe. Só pra pensar que a casa ainda é minha…
    Obrigada por estes textos lindos
    Um beijo!

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  2. Silmara querida, Tudo bom?
    Coloquei uma ilustra daqui no mei blog. E o link seu. Você pode fazer a gentileza de me dizer se está de acordo?
    Se não estiver, me diga. Retiro.
    Beijos,
    Smac!

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  3. Meu Deus do céu, mas ultimamente não há um post seu que não me faça chorar! E olha que eu não sou nem nunca fui mulherzinha sensível e tal. Parabéns, suas crônicas são MUITO tocantes. Me falam ao coração, sempre. Obrigada pela oportunidade ler o que vc escreve.

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  4. Logo que comecei a ler sua cronica aparece “o programa do Zé Bettio” noooossa!!! eu ouvia este programa e gostava muito. Quanto a sua crõnica um misto de ficçao, sonho e realidade é a forma perfeita para pensarmos como as coisas mudaram e mais uma vez penso em meus filhos (e da Josi)… Quais serão as semelhanças quando eles estiverem em nossos lugares? Valeu Silmara.

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  5. Silmaaaaaaaaaaaaaaaaara isso não é coisa que se faça! simplesmente me fez lembrar como sou uma mãe relapsa!!!

    Linda crônica!
    Me fez lembrar minha infância e meus filhos postiços, affffffffffff que saudades!!!

    Só que eu fiz assim, quando fiquei um pouquinho maior e tive que me adaptar a brincadeiras mais sérias, falei com mães mais adequadas para adotarem meus filhotes.

    Bem, hoje sei que estão em uma caminha perfumada e quente! bjs

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  6. Nossa! Este texto me lembrou da importância de se manter parte do passado carinhosamente guardada. Sou desapegada demais com as coisas materiais mais antigas (mesmo as sentimentalmente valiosas). Dôo tudo a partir do momento que deixo de usá-las. Seu texto me fez arrepender um pouco. Não tenho nenhuma boneca da minha infância (eu tinha várias, mas nunca fui muito apegada a elas, gostava mesmo era de brincar de escolinha, pegador de esconder e soltar papagaio). Outro dia achei minha pasta de papel de cartas. Já ia jogar fora, quando minha mãe sabiamente me advertiu: “Filha guarde para você se lembrar das coisas boas da vida…” Feliz decisão.

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  7. Quase chorei com a sua crônica hj. Num minuto, tantas lembranças…Minha irmã tinha o Manequinho. Minhas bonecas também eram taurinas ou capricornianas. Guardo alguns brinquedos da infância, os que ficaram inteiros, e minha filha (que tb se chama Nina!), adora abrir a ‘caixona dos brinquedos da mamãe’. Por meio deles, ela se convence de que um dia eu tb fui criança. E ficamos ali, de igual para igual, brincando com a imaginação.
    Beijos

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  8. Oi Silmara!
    Eu também deixei na casa da mainha mãe as minhas filhas de brinquedo… Uma Amiguinha que fica sentada no canto da sala até hoje, a Beijoca que dei pra minha mãe quando eu tinha 7 anos pois fui morar um tempo com minha madrinha e minha mãe ficou sozinha aqui em Curitiba e um Bebê (Meu Bebê) que ganhei aos 10 anos e agora mora na chácara… são um pouquinho de fantazia e de infância que fica onde deve estar, na casa do dosso passado… Peninha sinto de não ter guardado a Susi e a Sissi… e minha coleção de bonecas de papel… mas essa é outra história.
    beijinhos SIlmara e um bom fim de semana!

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