Comunicação e trumbicação

Ilustração: Jessica Gluckman/Flickr.com

Dobro a esquina e preciso reduzir a marcha: um cão atravessa a rua. Sem pressa alguma em alcançar o outro lado, o sem-teto peludo segue lerdamente, a cauda balançando para lá e para cá. Língua de fora, o sol. Também não estou com pressa, é a sua sorte. Um motorista mais afoito e o totó já era. A pequena e compulsória pausa no meu trajeto, no entanto, não é em vão. Afixado ao alambrado que cerca um dos espaços não construídos do quarteirão, jaz o cartaz:

“Faço limpeza de terrenos e corto grama”

Volto para casa, devidamente informada de que há uma pessoa no bairro que limpa terrenos e corta grama. Para o caso de, um dia, quem sabe, eu precisar do serviço.

No mercado de trabalho informal as pessoas sempre dão um jeito de divulgar, a quem interessar possa, suas habilidades. “Reformo sofás”. Faço amarração para o amor. Os meios, públicos ou particulares, são variados: postes, paredes, muros. No meu bairro, por conta da grande concentração de terrenos vazios, os preferidos são os alambrados. Eles constituem as bases ideais para uma propaganda eficaz. Estão dentro do campo de visão de motoristas e pedestres. Não requerem investimentos pesados. O anunciante do alambrado não paga taxa, nem imposto, não precisa de uma agência de publicidade. Corre, no entanto, o risco de ver seu anúncio ir para o beleléu numa chuva mais forte. Mas quem se importa? Tanta gente o verá, antes disso. Na contramão da comunicação segmentada o cartaz do alambrado dá tiro para todo lado (embora seu posicionamento seja perfeito: em frente ao terreno, objeto da mensagem). Uma hora, ele acerta. Sem custos, e isso já está bom demais.

Imagine que, no seu bairro, todos os moradores usassem a estratégia do nosso limpador. Não só para garantir o bico do próximo mês. Mais que isso: para apresentar os autores de demanda e oferta um ao outro. Você pode passar a vida tentando curar uma unha encravada, sem saber que na rua de cima mora um dos maiores especialistas em unha encravada do mundo. Colocasse o vizinho médico, ou você, um cartaz no alambrado, e um saberia do outro. Ou: você quer muito encontrar um exemplar daquela revista que você lia na adolescência. A mãe da moça que trabalha na farmácia da esquina tem a coleção inteirinha. Nas cidades, só se sabe dos outros o básico: onde mora, onde trabalha, qual carro tem. O não-básico – às vezes, mais importante – vive escapando.

Continue imaginando. Os alambrados ganhariam um papel social e se transformariam num banco de dados gigantesco, informal e independente, alimentado pela própria comunidade, com informações sendo cruzadas o tempo todo. Das mais úteis (“Sou enfermeira e cuido de idosos”) às nem tanto (“Imito o Pica-Pau”). Tudo estaria ali, para quem quisesse contar e para quem precisasse saber. Afinal, o Chacrinha já decretou: quem não se comunica, se trumbica.

4 comentários em “Comunicação e trumbicação

  1. he, he, he! Mas isso é que é comunicação eficiente!
    Que Duda Mendonça não leia este seu texto. Já pensou, propaganda do PT em todos os alambrados?

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  2. Meus Deus do céu, mas ultimamente não há um post seu que não me faça chorar! E olha que eu não sou nem nunca fui mulherzinha sensível e tal. Parabéns, suas crônicas são MUITO tocantes. Me falam ao coração, sempre. Obrigada pela oportunidade ler o que vc escreve.

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  3. Só para fazer uma correção: “..para nos apresentarmos uns aos outros…” e acrescentar que sou de Fortaleza-CE, um lugar onde faz sol o ano inteiro.

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  4. Seguindo o espírito do post de hoje, bem que a gente poderia transformar o espaço dos comentários num grande alambrado virtual para se apresentar uns aos outros. Que tal?
    Então eu vou começar… Meu nome é Nara, sou gente… No trabalho sou psicanalista. Meu hobby favorito é montanhismo. Recentemente conheci a Silmara e ela é sim tudo isso que conhecemos através dos seus escritos.
    Grande beijo a todos. Foi um prazer! Alguém mais se arrisca?

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