O pão nosso de cada dia

Ilustração: N.C.Mallory/Flickr.com

Descrição de acidente de trânsito é sempre estúpida. A gente vai narrando, atinando na sequência de besteiras cometidas e se perguntando como é que aquilo pôde acontecer.

Domingo à noite, após um rápido raciocínio, cheguei à conclusão: não faria sentido algum a suculenta sopa que o marido preparava não ter a companhia de um pão italiano. Como um soldado solitário – estavam todos ocupados no preparo das batatas –, rumei à padaria. E como nos últimos vinte anos eu não me animo a percorrer nem duzentos metros a pé, fui de carro. Do balcão, apontei para o exemplar mais gordo, assado à perfeição. Um harmonioso equilíbrio de cores, do bege claro das partes menos tostadas ao marrom crocante da casca que se rompera ainda no forno, agora salpicada com uma leve farinha branca.

O pão perfumava o carro inteiro, provocante. Mantive, no entanto, a disciplina que caberia ao soldado: não comi nenhum pedacinho. O caminho até em casa é curto, tranquilo. Alguns quarteirões mais e estaríamos diante do trio pão–sopa–azeite, coroando o final de semana. Não fosse um motorista com pressa de chegar à sessão das oito ter feito uma ultrapassagem arriscada e, na contramão, acertado meu carro em cheio, interrompendo de vez a minha experiência sensorial ao lado do pão quentinho.

Se estou contando a história, é fato que não morri. Não sei se tem internet no além (se tem, deve ser mais rápida). Estou bem viva e sem nenhum arranhão, ao contrário do moço apressado. Porém, ainda frustrada pelo jantar realizado sem mim. E pelo pão que acabou esquecido lá no cesto da cozinha. Três dias depois, eu o reencontro. Continua na embalagem, lacrada com a etiqueta da padaria. Petrificado.

No bairro onde eu cresci, de vez em quando apareciam aqueles parquinhos de diversão mixurucos. Eu ia sempre em dois brinquedos: trem-fantasma e carrinho-que-bate. Gostava da sensação de medo no primeiro, e do frio na barriga que antecedia a trombada no segundo. No domingo, foi como ir, ao mesmo tempo, nos dois brinquedos. Só que desta vez, o medo e o frio na barriga eram de verdade. Prefiro o parquinho.

No tempo desses parquinhos, à tarde alguém sempre ia à padaria comprar uma ‘bengala’. Que hoje é baguete, e é menor. Nome mais chique, europeu. Adaptei-me à mudança, praticamente esqueci o antigo nome. Mas sinto saudades da velha bengala. Minha mãe a cortava em fatias, passava margarina nos dois lados e as colocava para dourar na frigideira. Acho que nem aquele pão italiano poderia ser tão bom.

A compaixão e a raiva me dividiram em duas pessoas distintas enquanto, sob a chuva fina do local, eu ditava ao policial meu depoimento. Uma de mim queria que eu lamentasse a sorte do moço que não tinha nada: nem juízo, nem carteira de habilitação, nem coragem de encarar-me, nem carro (arruinado e apreendido por falta de documentação), nem seguro, nem mão direita (que seria engessada) e nem sessão das oito. Outra de mim só fez praguejar: só a mão quebrada? Por que não os dois braços e o pescocinho também?

E entre as duas coisas, outro sentimento, que ainda não batizei, me lembra da impermanência das coisas todas. Num segundo, moro neste mundo; no próximo, posso me mudar. Num instante, meus filhos têm mãe; no seguinte podem não ter mais.

Num dia, aquele pão era o supra-sumo; no outro, apenas uma massa endurecida e sem graça. Eu deveria era tê-lo devorado já na saída da padaria. Isso sim.

14 comentários em “O pão nosso de cada dia

  1. Estória trágica mas recontada de forma deliciosa…tão deliciosa como pão quentinho recém-saído do forno. Porque convenhamos, não tem coisa melhor do que pão com manteiga, né?

    Que bom que você sobreviveu o acidente pra contar a estória…

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  2. Oi Silmara, cheguei aqui pelo blog da Laely e me apaixonei pela sua forma de escrever. Mesmo uma situação tão desagradável torna-se interessantíssima quando seguimos seu raciocínio! Virei mais vezes para saborear as lascas quentinhas das suas palavras! Um beijo.

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  3. Sil! Quanto tempo! Isso tudo culpa das mudanças sabia? (dessa vez não foi o Walter!) Mudei o template do Walter e isso me deixou sem conseguir acessar os meus blogs preferidos! Problema corrigido, estou de volta primeiro pra te dizer que sua descrição do acidente não foi estúpida, pelo contrário. Segundo que se fosse comigo teria quebrado a outra mão do louco. rsrs E finalizando pra dizer que morri, morri, morri de saudade de ler os seus textos e dizer que estou com muitos beijos na alma, de sua propriedade, acumulados. Vou começar agora:

    Beijos na alma!
    Layla Barlavento
    culpadowalter.blogspot.com

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  4. Otimo texto, pessimas circunstancias. O importante e que voce esta bem, mas mesmo assim Sil, nao e facil, um acidente desses, mesmo sem piores consequencias deixa a gente abalada, fragil.
    Agora sei que com pao ou sem pao, voce escreve aqui, o dia que eu nao ler uma postagem mais ou menos atualizada, vou ficar de cabelo em pe. Entao, por favor, nao para nao.

    Enquanto isso, receba mesmo de longe minhas vibracoes.
    Ai que saudade do paozinho. Espero que ja tenha comido um frequinho desde entao.

    Um grande beijo Sil.

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  5. Sei que se trata de uma tragédia, ou quase tragédia… mas o que me admirou mesmo foi a sua forma de escrever… um primor, que me prendeu a atenção do início ao fim.
    Beijo
    Helena

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  6. Silmara, estava aqui, saboreando migalha por migalha deste suculento banquete literário, quando também levei um susto!
    Como sempre, consegue fazer do pão dormido uma rabanada, ou pudim de pão, ou vatapá…mas, nada se perde aos seus olhos de boa escritora, e boa apreciadora de pão, como eu.
    Beijo, querida. Que bom que não foi nada sério.

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  7. Bom dia querida!
    Uau que aventura no parquinho da vida!
    Eu acho que é um sinal pra você aprender a fazer pão em casa…rs
    Atrapalhar a sopinha do final de semana foi muita sacanagem. Aqui em casa o maridão faz sopinhas divinas todo final de semana também, mas eu sou responsável pelo pão – não o italiano mas o integral de inhame, mandioca, abóbora, arroz integral ou outro. Se você quiser receitinha é so falar.
    Bijim e Om Shanti

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  8. Sil, nesses momentos as sensações são tão contraditórias…
    Dá vontade mesmo de desejar um engessamento total do tal motorista “sem nada” (adorei essa parte…) E ao mesmo tempo a sensação de alívio e gratidão por você não ter sofrido nada (físico) mais grave.

    Que o coração se alcalme… e no próximo pão… manda pra dentro na hora que ele “piscar” pra você, te paquerando!

    Bjooo

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  9. Querida Silmara, folgo em saber que vc está bem, apesar do susto, que nós mães, já estamos acostumadas…

    Os danos materiais são o menor dos problemas, certo? Quando roubaram nosso carro há quinze dias atrás, com as mochilas das crianças junto, fiquei do avesso, ainda estou pagando os livros que foram levados e já tenho que comprar tudo de novo!! Queria que o ladrão tivesse decência, e me devolvesse…Mas quê, hoje em dia isso é raro, decência, respeito…

    Eu não sei, parece que as pessoas estão tão incrivelmente sem valores atualmente que sair de casa para comprar um pão vira uma aventura perigosa…Que dias vivemos…No trânsito, então, nem me fale. Aqui nós não saímos de casa às sextas feiras. Parece que as bruxas estão à solta, tamanha a pressa das pessoas, que acabam cometendo loucuras.

    E fiquei pensando aqui com meus botões, já que acaso não existe, o que será que está nos escapando, quando a gente passa por esse tipo de situação? Não sei, talvez reforçarmos nossa proteção espiritual, talvez finalmente nos conscientizarmos da nossa própria fragilidade (é que mãe tem que ser forte, então a gente esquece que é humana também…), talvez até começar a caminhar e ir a pé para a padaria e voltar bem devagar, não com um, mas com dois pães, um para casa e um para o caminho…

    Mando junto com este um quilo de calma, dois de paciência, três de esperança, e um abraço bem grande!

    Uma semana iluminada (Quem sabe agora vc não compra aquele seu beetle amarelo tão sonhado???)

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  10. Oi!

    Hj qdo tentei entrar no seu blog vi que meu histórico de sites havia sido apagado… daí tive que entrar através do google. Sempre que faço isso, o google mostra um texto aleatório, as vezes bem antigo… Hj foi assim… e quando entrei me deparei com o texto O pão nosso de cada dia… Quando li tomei um susto e me perguntei: onde eu estava no dia 17/03/2010 que não vi esse texto? Fiquei procurando na memória e o arquivo tava vazio. Eu pensava: eu leio todos os textos da Silmara e no dia em que ela sofre um acidente eu nao estou aqui para dar um apoio…
    Só agora, com mais calma, é que me dei conta de que HOJE é 17/03…
    Silmara, que bom saber que vc tá bem! Ufa! Essa notícia do acidente conseguiu me tirar de tempo!
    Essa frase: “Eu deveria era tê-lo devorado assim que entrei no carro. Isso sim” já está aqui reverberando… vai ficar ecoando e com certeza vai render bons frutos! Depois eu te conto!
    Um grande beijo!

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  11. Querida Silmara!!!!!
    Ufa, que susto, né?
    Quando me atingiram em cheio, uma vez, eu tive a sensação de que tudo tinha sido rápido demais e ao mesmo tempo, devagar demais (meio matrix).
    Somos assim mesmo, inconstantes e frágeis, a espera do que está por vir.
    Que bom que vc está bem (se este for um relato do que aconteceu mesmo)!!!
    bjsss

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    1. Cris, sei que sou dada a devaneios nos meus escritos. Mas neste aqui eles ficaram de fora. Foi assim mesmo que aconteceu. Beijos 🙂

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  12. Sil, ainda bem que posso ter a certeza de que você está bem. Tomei um susto quando comecei a ler a postagem.

    Quanto à postagem, como sempre maravilhosa.

    Beijos.

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