Carta para o motorista de trás

Moço

Logo vi. Alguém que gruda no carro um adesivo escrito “Festa do Peão de Boiadeiro, eu fui” não poderia ser alguém lá muito civilizado. Você pode até ter ido, moço. Para satisfazer seus instintos ancestrais. Mas não precisa contar para ninguém. Se fosse “eu vou”, eu compreenderia sua pressa ao tentar me ultrapassar pela direita. O evento é daqui cinco meses mas, com o trânsito de sexta-feira na capital paulista, você certamente chegaria atrasado.

Em todo caso, antes que você pense o contrário, eu não sou a culpada por ele. Estamos no mesmo barco. Embora, se estivéssemos de barco, era só pegar o rio Tietê e estaríamos longe, bem longe. Mas Deus nos deu rodas. Só nos resta brincar de somar as placas dos carros à nossa volta, checar os emails pelo celular, disfarçando bem para o amarelinho não ver, ou comprar pipoca de canjica oferecida de cinquenta em cinquenta metros pelos ambulantes, enquanto os fiscais não removem o caminhão quebrado ali na frente.

A maioria das pessoas diz, com orgulho, que não tem inimigos. Porém, ao ver pelo meu espelho retrovisor o seu olhar irado, os seus sinais que, confesso, nem sei o que querem dizer, mas boa coisa não deve ser, começo a acreditar que a afirmação não vale para mim. Não nos conhecemos, mas você age como se eu fosse sua inimiga. Ou, no melhor dos casos, um obstáculo a ser transposto, um organismo indesejável, um vírus a ser exterminado.

Que as pessoas se transformam atrás de um volante, todo mundo sabe. Quem nunca assistiu aquele desenho de Walt Disney, incrivelmente atual apesar de ter sido feito em 1950? Assim é você, moço. Meu avô diria que você está indo tirar o seu pai da forca. Mais alguns minutos e poderá ser tarde demais. O motivo da condenação do seu pai? Ter permitido que você tirasse carteira de motorista. Talvez nem você saiba por que está com tanta pressa. Afinal, o importante é ultrapassar, não ser deixado para trás, chegar antes. Ainda que somente dois minutos e quinze segundos antes.

Do meu posto, eu vejo tudinho o que você faz. Seu ar de enfado, sua investida frustrada na ruiva da pickup ao lado, seu ímpeto de viver um dia de fúria como o Michael Douglas. Não há saída, meu caro: ou encolhemos nossos carros, ou criamos mais ruas. Ou vamos todos viver felizes em Borá, o menor município do país, pertinho daqui. Nem todos os quase mil habitantes de lá têm carro, um sossego. No entanto, no meio desse caminho ficamos, eu e você, nessa relação tão delicada. Eu sou a motorista da frente que, para você, não anda. Você é o motorista de trás que, por não ver direito o que acontece lá na frente, dá de esbravejar, esmurrar, gesticular e ameaçar lançar seu carro contra o meu como se os cavalos do seu motor fossem de verdade. Trânsito é uma das mais tristes variantes da cegueira urbana, a psicopatia temporária manifesta até por cidadãos de bem. É, moço. O mundo ficou pequeno para tantos bólidos. E, por causa do caminhão, não adianta reclamar: todos nós passaremos, mas um de cada vez.

Por falar em mundo pequeno, já pensou se estamos indo ao mesmo lugar? Imagine: você está indo visitar um amigo no mesmo prédio onde mora minha amiga que faz aniversário hoje. Vai ter festinha e eu não perco o rissole de palmito da Dona Janu por nada deste mundo. Estacionaremos na mesma rua, aguardaremos juntos o porteiro nos anunciar. Você vai ao quinhentos e um; eu, ao seiscentos e dois. Como no desenho de Disney, você já terá desincorporado o malévolo senhor Wheeler para voltar a ser o gentil senhor Walker. Até se oferecerá para apertar o botão do sexto andar.

Não é impossível que isso aconteça, moço. Portanto, melhor você se comportar e parar de piscar o farol. Senão, eu conto para todos no elevador (lá no prédio onde, se meu devaneio fizer sentido, a gente vai se encontrar) que você tira meleca do nariz e depois fica analisando o material.

Atenciosamente,

Moça da frente

14 comentários em “Carta para o motorista de trás

  1. he, he, he! Esse desenho do Pateta é ótimo! Deveria passar em todo curso de direção defensiva e antes de tirar a CNH.
    Mas, confesso meu lado B: eu me transformo no trânsito, de uma pacata cidadã de cidade pequena a uma motorista de fórmula 1, em dia de prova. Releva…

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  2. Eu também ando com medo de gente, por causa do trânsito.
    Mas aí eu sempre tento pensar no que o meu marido acha que pode justificar o comportamento desses motoristas : “Deve estar com vontade de fazer cocô!”
    Maria Tereza Bitar
    Belo Horizonte

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  3. Olha só o poder de um retrovisor quando se trata do olhar da Silmara Franco.

    Mas confesso, foi o primeiro texto que ao final eu pensei: Eca!
    Hahaha

    Um beijo,
    Camila
    ilimitada-mente.blogspot.com

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  4. Sil…gosto de seus textos mas o começo desse não gostei…achei um pouco de preconceito falar do adesivo!!!!…gosto é gosto…mas do resto amei…bjus

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  5. só nao gostei do comentário sobre o adesivo… e não fui nem tenho vontade de ir à festa do peão de boiadeiro… mas qual o problema em se orgulhar de ter ido? xD
    no mais, belíssimo texto, como sempre…

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  6. Sil, estamos totalmente em sintonia hoje, aconteceu o mesmo comigo, inclusive fiz um post no blog sobre isso… pq fiquei indignada, o motorista de trás, buzinava a cada abertura de farol e olha que eu nem estava na faixa da direita!!!

    aff…

    beijos

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  7. Querida!!!!

    O que dizer, então, das rotatórias, que nenhum motorista daqui se dá ao trabalho de pararrrrrrrrrrrr, dando preferencia a quem já está na mesma!!!!
    Sou motorista, paulistana, mas NÃO ENTENDO essa falta de educação!
    bjsssssss e bom fim de semana

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  8. Excelente texto novamente. Eu me pergunto: onde esse povo tirou (comprou?) carteira de motorista? Internet? Farmácia?

    Eu já presenciei coisas do arco da velha não só em SP como em outras cidades do Brasil e do mundo. E aprendi que para muita gente não existe seta (para que serve aquela varetinha à esquerda do volante?), não existe retrovisor, não aprenderam que num cruzamento quem tem preferência é quem está na direita e não quem tem o carro maior, não entendem como funciona uma rotatória e o principal: ao entrar no carro a educação e o respeito ficam do lado de fora, como no desenho que você linkou.

    Triste realidade, mas tudo bem. Ao invez de me revoltar com esse povo, eu gentilmente dou a passagem, dou a vez no cruzamento, etc, fico mais gentil que de costume. Podem ir em paz na sua corrida maluca – penso: deve estar apertado para fazer xixi ou está com muita fome. Prefiro evitar de me aborrecer. Dá certo na maioria das vezes. A gente tenta, né? 🙂

    Beijos, Silmara.

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  9. Sil… o desenho é uma obra prima… um clássico mesmo e super atual. Sempre me deparo com esses motoristas apressados, sem paciência como se o mundo conspirasse contra eles. Como se eles fossem os únicos a querer chegar a qualquer lugar e o restante dos motoristas só estão ali, parados no semáforo, ou na fila do congestionamento com a única intenção de atrapalhar o seu caminho. Muitos não entendem uma seta ligada, o que seria aquela luz piscando pra esquerda do carro parado na esquina? Ou numa entrada de supermercado, que tal deixar um espaço pra que o carro que querer entrar no estacinomento possa passar e assim não atravancar a outra pista? Não vai tomar tanto tempo assim e o sinal já está amarelo mesmo… e aqueles que param sobre as passagens de nível, que são feitas justamente para facilitar a passagem dos pedestres? Eu estou sempre com crianças no carro e por isso ando atenta ao trânsito tentando me antecipar ao que os outros motoristas estão fazendo… não ando sozinha da rua, não sua a dona dela, mas sempre me deparo com o dono ou dona da rua, que deveria andar com um giroflex pink sobre o carro para que assim todos soubessem que essa criatura tem preferência sobre todos os outros, não é mesmo? Assim ninguém os incomodaria…
    Um beijinho Silmara!

    Josi

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